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Famílias que moram no 1º leprosário do Brasil recebem notificações de despejo durante a pandemia

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Famílias que moram no 1º leprosário do Brasil recebem notificações de despejo durante a pandemia


Casas ficam em terreno do Hospital Dr. Arnaldo Pezzuti, em Mogi das Cruzes, onde funcionou sanatório para pessoas com hanseníase. Advogada diz que ex-funcionários e ex-pacientes vivem no local há décadas: ‘não são invasores’. Governo de SP enviou notificações. Casas para casais que eram internados juntos no leprosário Santo Ângelo. Atualmente, o local é um bairro afastado dentro do Hospital Dr Arnaldo Pezzuti
Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz
Em 24 de dezembro do ano passado, a aposentada Nanci, de 69 anos, recebeu uma carta em sua casa, em um bairro afastado de Jundiapeba, distrito próximo a Mogi das Cruzes (SP).
“Passei mal quando li, acabou com o meu Natal. Era uma notificação de despejo dizendo que eu tenho seis meses para desocupar o imóvel e entregar as chaves”, conta.
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Também em dezembro, duas vizinhas de dona Nanci receberam o aviso. E outras sete famílias já haviam sido notificadas entre abril e maio, durante o pior período da pandemia em 2020.
As casas ficam no terreno que faz parte do Hospital Doutor Arnaldo Pezzuti Cavalcanti, onde até 1986 funcionou o Sanatório Santo Ângelo. Inaugurado em 1928, o edifício foi o primeiro leprosário do Brasil – uma colônia afastada das cidades onde pacientes de hanseníase eram internados à força por tempo indeterminado.
As famílias que ainda moram no bairro são ex-funcionários e ex-pacientes do leprosário Santo Ângelo. São pessoas que foram isoladas e marginalizadas pela extinta Política de Profilaxia da Lepra do governo brasileiro.
Advogada das famílias, Raquel Rondon explica que, em tese, o dono das terras é o governo do estado de São Paulo, autor de todas as notificações de despejo. Ela diz “em tese” porque a posse das terras está em disputa judicial há anos. Segundo a Procuradoria Geral do Estado, o governo estadual e uma mineradora que explora a região disputam na Justiça a posse do terreno desde 2013. (leia mais abaixo sobre a disputa fundiária).
“Além de querer despejar as famílias no meio da pandemia, o governo estadual não oferece nenhuma outra possibilidade de moradia, nenhuma alternativa que não o despejo. Ele nega até mesmo incluí-las em um programa de moradia”, diz Rondon.
Procurado pelo G1, o governo de São Paulo afirmou que dona Nanci e suas vizinhas são ex-funcionárias do hospital e que, desde que se aposentaram, não têm mais o direito de morar nas terras.
As demais famílias, segundo o órgão, são parentes de pacientes egressos do leprosário, mas que já morreram.
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“Tradicionalmente, o local dedicou 55 moradias destinadas exclusivamente a pacientes hansenianos e funcionários ativos da unidade, com todos os custos de água e luz, por exemplo, sob responsabilidade do hospital. Não há regularidade na permanência de moradores que não se enquadram neste perfil e, por isso, foram emitidas sete notificações”, diz o governo de São Paulo.
Rondon explica, porém, que essas famílias não são invasoras e algumas pessoas notificadas chegaram a nascer no local.
“Não são pessoas que chegaram no terreno por conta própria. Elas foram colocadas ali pelo Estado, e as terras serviram de cárcere. Depois, muitos dos seus familiares que hoje vivem na casa são filhos que nasceram dentro do local. Não são meros invasores, como diz o governo”, diz a advogada.
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Quanto às cartas terem sido enviadas em meio ao pio momento da pandemia de coronavírus, o governo afirma que o processo judicial para retirada de moradores do local está em curso desde 2014, mas “culminou num desfecho neste momento pelo próprio trâmite jurídico e não por decisão tomada neste momento [de pandemia]”.
E, apesar da disputa pela posse das terras estar em andamento, o governo estadual afirma pode despejar as famílias porque administra a área desde 1956. Mas, uma vez desocupadas pelas famílias, as casas não poderão ser usadas até a Justiça determinar quem é o dono da área.
A advogada Raquel Rondon relata que, em janeiro, as famílias ganharam uma liminar na justiça que pedia a suspensão das ordens de despejo até o final da ação por causa da pandemia. Contudo, mesmo alegando que não tem urgência em retomar as casas, o governo de São Paulo pediu que a decisão fosse revertida e conseguiu derrubar a liminar (leia mais ao final desta reportagem).
Casas ‘mal-assombradas’
Os moradores ouvidos pelo G1 também afirmam que, mesmo sob responsabilidade do hospital, as casas desocupadas estão em péssimo estado, com paredes trincadas, infiltração, janelas e portas quebradas.
Casas, que deveriam ser cuidadas pelo Governo de SP, estão abandonadas no Hospital Doutor Arnaldo Pezzuti Cavalcanti.
Arquivo pessoal
“Quando sai o morador, e a casa desocupa, o estado esquece dela, fica abandonada”, diz Marilisa, de 32 anos, que vive no local. A mãe dela é uma das que receberam a notificação. Outros moradores reclamam de mato crescido, sujeira no terreno, criminalidade e insegurança.
A advogada conta: “Existem muitas casas desalojadas, parecem casas mal-assombradas. Um corpo chegou a ser desovado dentro do complexo no ano passado. Isso prova que o estado não está cuidando do local e não tem urgência para requerer essas terras.”
Casa desalojada é uma das que estão abandonadas no terreno do Hospital Doutor Arnaldo Pezzuti Cavalcanti
Arquivo pessoal
Êxodo invertido
A cuidadora Gislene Dias Soler, de 48 anos, mora em uma das casas notificadas. Seus pais foram internados lá à força pelo governo paulista na década de 1960, ainda jovens.
“Meu pai era de São Paulo, minha mãe, de Taubaté. Eles se conheceram dentro do leprosário e tiveram eu e minhas três irmãs aqui”, conta Gislene.
Sanatório Santo Ângelo, o primeiro leprosário construído no Brasil pelo governo para isolar pacientes de hanseníase, fundado em 1926.
Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz
Apesar de ter nascido no leprosário, Gislene e as irmãs foram separadas dos pais após o parto, uma vez que a Política de Combate à Lepra permitia enviar os filhos saudáveis dos pacientes a educandários – espécie de orfanato para crianças com pais hansenianos.
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A filha mais velha do casal morreu no educandário. Gislene e as outras duas irmãs foram reencontrar os pais somente em 1980.
“Fiquei no educandário até os seis anos. Até que, naquele ano [1980], todos os pacientes receberam alta do hospital, inclusive meus pais. O complexo não queria mais os pacientes morando aqui”, diz a cuidadora.
O Programa Nacional de Controle da Hanseníase, que determinava a internação e isolamento compulsório do paciente, passou por total reestruturação em 1986, quando os 41 leprosários construídos por todo o país foram proibidos.
Prevendo as mudanças, alguns hospitais-colônia começaram a dar alta a seus pacientes no início da década de 1980 para reformular o terreno e demolir partes que poderiam ser consideradas locais de maus-tratos, como as cadeias para internos, muito comuns nesses terrenos.
“Meus pais saíram do leprosário e foram atrás das filhas. Fomos morar em uma casa em Jundiapeba”, lembra Gislene.
Os pais de Gislene nunca voltaram a trabalhar por causa das sequelas causadas pela hanseníase e por não terem se adaptado à sociedade fora dos muros do leprosário.
Mesmo sem se reintegrar à sociedade, a família viveu em Jundiapeba por mais de 20 anos. As irmãs de Gislene se casaram e saíram de casa, mas a cuidadora conta que escolheu ficar com os pais para cuidar deles.
Em 2004, a saúde do casal piorou, e a família decidiu retornar para o terreno da antiga colônia.
Casas do antigo leprosário Santo Ângelo, construídas em 1926, hoje abrigam famílias de pacientes egressos.
Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz
“Meu pai não conseguia mais segurar nada, e minha mãe tinha muitas feridas nos pés. Eles começaram a precisar de cuidados 24 horas por dia. Decidi me demitir do meu trabalho para me mudar para o hospital com eles e ser cuidadora deles em tempo integral”, conta. “Cuidei dos dois até o último dia deles.”
A mãe de Gislene morreu em 2014, e o pai, em 2017. Desde então, ela mora sozinha na casa, uma edificação simples de quarto, sala e cozinha. A notificação de despejo chegou, contudo, somente em abril de 2020.
“Apesar de tudo o que meus pais passaram, foi aqui que eles se conheceram e morreram. Foi aqui que eu e minhas irmãs nascemos. Minhas lembranças estão aqui, eu tenho amor por esse lugar.”
Além do vínculo afetivo com o local, Gislene conta que, desde que se demitiu para ficar com os pais, passou a trabalhar apenas fazendo bicos como cuidadora de três ex-pacientes do leprosário.
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“É muito pouco, dá uns R$600 no mês, mas vivo disso. Mesmo não pagando aluguel, é muito difícil se manter. Não sei como vai ser o dia em que for despejada. Para onde eu vou?”, diz, com a voz embargada.
Ela entrou na Justiça em 2021 pedindo o direito de permanecer na casa, e também luta há dez anos pedindo reparação à União por ter sido separada dos pais na infância, em razão da política de saúde da época, e por ter sofrido um acidente enquanto estava sob tutela do governo.
“Quando nasci, imediatamente uma ambulância do governo veio me levar para o educandário. A ambulância teve um acidente, e o funcionário que me carregava me derrubou no assoalho do veículo. Passei por várias cirurgias no Hospital das Clínicas de São Paulo. Hoje, tenho deformações no rosto, na boca e problema nos olhos”, diz.
Gislene preferiu não ser fotografada para esta reportagem.
Estima-se que mais de 40 mil crianças, como Gislene e as irmãs, tenham sido separadas dos pais pacientes de hanseníase durante o século passado por causa da Política de Combate à Lepra. Muitas delas morreram nestes locais sem terem reencontrado os pais.
Uma vida dedicada ao hospital
Dona Nanci em frente a casa onde mora há mais de 30 anos, no terreno do Hospital Arnaldo Pezzuti Cavalcanti, primeiro leprosário do país, mas poderá ser despejada em 3 meses pelo governo paulista.
Arquivo pessoal
Dona Nanci e as duas vizinhas notificadas não eram pacientes de hanseníase. Elas são funcionárias públicas aposentadas do Hospital Dr. Arnaldo Pezzuti Cavalcanti e se mudaram para o local que integrava a colônia Santo Ângelo mais de 40 anos atrás, a pedido do diretor técnico da entidade na época.
“O hospital era muito afastado da cidade, era muito difícil chegar aqui. Não passava ônibus, o acesso era quase impossível, o objetivo era isolar essas pessoas das cidades. Por isso, o diretor técnico convidou alguns funcionários para que morassem aqui, porque eles tinham que entrar muito cedo, ou eram necessários durante a noite ou poderiam ser requisitados com urgência”, explica Nanci.
Na época, o terreno da colônia Santo Ângelo era dividido em três alas: a do leprosário, a do setor administrativo do hospital e uma pequena colônia para os trabalhadores.
“Eu tinha dois bebês gêmeos na época. Foi difícil morar aqui no começo. Não tinha nada perto, até para comprar um pão precisávamos dirigir até a cidade”, lembra ela.
Quatro anos após terem se mudado para o hospital, Nanci e o marido se separaram, e ela criou sozinha os três filhos na casa em que mora até hoje. “Ele não aguentou viver tão isolado e se separou para voltar para a cidade”, diz a ex-funcionaria.
Nanci conta que, além de viverem isolados, os trabalhadores que moravam nas terras de Santo Ângelo eram comumente alvo de discriminação por causa do preconceito contra a hanseníase.
“Em 1988, decidi fazer faculdade de administração para seguir carreira dentro do hospital. Minha turma era grande, tínhamos aula em um auditório. Quando descobriram que eu era funcionária de lá, passaram a se sentar duas carteiras longe de mim”, lembra a aposentada.
Mesmo com os estigmas, Nanci permaneceu no hospital, como moradora e funcionária. Desenvolveu diversos projetos de reinserção dos hansenianos na sociedade e lutou para tombar parte do patrimônio histórico do leprosário Santo Ângelo.
Em 2000, chegou ao cargo de diretora-administrativa, e se aposentou 14 anos mais tarde. Ela conta que já chegou a receber notificação de despejo antes da mais recente, mas não precisou sair do local.
“A assistente social argumentou que manter aqueles imóveis ocupados ajudava a manter o patrimônio. De fato, aqui é um lugar afastado e desprotegido, o que o torna fácil de ser invadido. Algumas casas já estão abandonadas, e temos problemas de invasão”, conta.
Casas desalojadas do Hospital Dr Arnaldo Pezzutti estão em estado de abandono, segundo moradores do local.
Arquivo pessoal
“Sempre tive consciência de que isso não é meu, de que um dia poderiam me pedir para desocupar. Mas passaram-se anos – e, do nada, no meio de uma pandemia, chega uma ordem de despejo. Além da história que tenho com esse lugar, eu sou idosa e tenho doença autoimune, grupo de risco para o coronavírus”, diz a aposentada.
Casas dentro do terreno do Hospital Dr Antônio Pezzutti estão abandonadas e moradores reclamam de insegurança e sujeira.
Arquivo Pessoal
‘Qual a urgência?’
Ao falar sobre a liminar obtida pelos moradores do local em janeiro, mas que foi posteriormente derrubada na Justiça pelo governo de São Paulo, a advogada Raquel Rondon questiona:
“Qual a urgência do estado em retomar essas casas a ponto de derrubar nossa liminar no tribunal?”.
A Procuradoria Geral do Estado de São Paulo diz que, sem a liminar, os imóveis podem ser retomados a qualquer momento.
Rondon diz: “É um absurdo que, no meio de uma pandemia e de tanta restrição de circulação feita pelo próprio governo estadual, agora ele queira retirar pessoas das casas e jogá-las nas ruas, sem se preocupar se elas têm para onde ir, se alguém vai pegar o vírus, se vão adoecer”.
As famílias movem uma ação na Justiça contra as ordens de despejo pedindo que seja cumprida uma das três alternativas a seguir:
que o governo estadual seja condenado a manter o parente de primeiro grau na posse da casa de forma vitalícia e somente após a sua morte os parentes sejam condenados a sair do local;
que o governo estadual indenize as famílias em um valor que lhes permita comprar um imóvel;
ou que o governo estadual seja obrigado a inserir as famílias em um programa habitacional de moradia popular.
A Procuradoria Geral do Estado de São Paulo informou que nenhum dos pedidos é considerado uma opção e que as famílias não podem ser inseridas em programas habitacionais por “não atenderem aos requisitos do programa”.
Terra em disputa
Placa dentro do Hospital Dr Antônio Pezzutti informa que as terras seriam da mineradora Itaquareia.
Nanci dos Santos Duarte Cardozo
As casas de Dona Nanci e suas vizinhas estão em uma parte do terreno marcada por placas informando que as terras são de propriedade de uma mineradora, e não do governo.
“Se as terras são da mineradora, por que a notificação de despejo veio do governo?”, questiona a aposentada.
A Procuradora Geral do Estado de São Paulo, Amanda de Moraes Modotti, confirma que o governo de São Paulo disputa judicialmente a posse das terras desde 2013, quando entrou com uma ação de usucapião contra o Hospital Casa de São Paulo.
Originalmente, as terras foram doadas por famílias ricas à Santa Casa construir um hospital-colônia para hansenianos longe da capital – local que viria a se tornar o leprosário Santo Ângelo.
“O estado de SP está na posse das terras desde 1956, quando fez um contrato de comodato com a Santa Casa. Em 2013, entramos com usucapião para regularizar a situação, mas a mineradora Itaquareia alegou ter comprado o terreno da Santa Casa em 2008”, explica a procuradora Modotti.
Em 2017, a Itaquareia entrou com um pedido de indenização contra o estado de SP, mas, segundo Modotti, apresentou escrituras de compra e venda das terras que nunca foram registradas.
Ambos os processos correm na Justiça.
A mineradora Itaquereia não quis comentar o assunto e afirmou, por e-mail, não ser proprietária das terras.
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