Cientistas estudam estímulos elétricos para tratar Covid grave
Estrutura do sistema nervoso que liga o cérebro a diversos órgãos do tórax e do abdômen vira alvo de terapia não invasiva que pretende controlar a inflamação excessiva de pacientes hospitalizados. A expectativa é que os pequenos choques no sistema nervoso ajudem a controlar a inflamação, um dos fatores por trás do agravamento de pacientes internados com Covid-19
Odair Leal/Secom
Imagine a cena: um pequeno eletrodo é grudado no seu corpo e emite, durante 90 minutos, estímulos elétricos indolores e quase imperceptíveis, numa rotina que se repete duas vezes ao dia ao longo de uma semana.
A prática, relativamente comum em sessões convencionais de fisioterapia, começa a ser avaliada também num cenário bem mais complexo: a Covid-19 grave.
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Cientistas brasileiros da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e da Universidade Nove de Julho (Uninove), em São Paulo, decidiram iniciar um estudo piloto para entender se a estimulação elétrica não invasiva do nervo vago, uma estrutura do sistema nervoso, pode trazer benefícios aos pacientes com os quadros mais severos da infecção pelo coronavírus.
“Sabemos que o sistema nervoso central tem um papel importante no controle da inflamação, que é um dos fatores por trás dos casos mais graves da Covid-19. Queremos então buscar uma resposta anti-inflamatória”, diz o neurocientista Felipe Fregni, professor de reabilitação da Faculdade de Medicina de Harvard.
“E a estimulação do nervo vago tem sido estudada como um possível tratamento seguro e com poucos efeitos colaterais para várias enfermidades”, completa a fisioterapeuta especializada em neurologia Fernanda Ishida Corrêa, professora da Uninove.
“Fora que o equipamento é relativamente barato e fácil de transportar pelo hospital”, completa a especialista.
O experimento, que está em vias de ser finalizado, incluirá 20 voluntários no total e, caso os resultados sejam promissores, pretende servir de base para estudos maiores.
Mas por que focar no nervo vago? E o que a Covid-19 tem a ver com a inflamação?
Uma cascata de eventos
Como você muito provavelmente já sabe, a Covid-19 é uma doença provocada pelo Sars-CoV-2, um tipo de coronavírus.
O problema começa quando o agente infeccioso invade as células da superfície dos olhos, do nariz ou da boca.
Na maioria das vezes, o quadro evolui bem e o indivíduo apresenta poucos sintomas e logo se recupera.
Porém, numa parcela de 10 a 20% de acometidos, as coisas não se solucionam tão tranquilamente assim. Neles, o vírus avança corpo adentro e afeta vários órgãos, especialmente os pulmões.
Como se não bastasse a Covid-19 em si, esses pacientes ainda sofrem com uma série de desdobramentos: a infecção pode desencadear uma reação desmedida do sistema imunológico que, na tentativa de defender o corpo, acaba provocando alguns dados colaterais pelo caminho.
O resultado dessa bagunça é um estado de intensa inflamação, que lesa os órgãos e piora de vez a situação.
É por isso, inclusive, que alguns remédios anti-inflamatórios são prescritos para os indivíduos internados com Covid-19 grave. Esses medicamentos ajudam a modular a resposta das células de defesa, diminuindo possíveis estragos.
Mas e se existissem outras maneiras de controlar esse caos inflamatório sem precisar necessariamente dos fármacos (ou diminuir o uso deles)?
Choques na orelha
É justamente aqui que entra o nervo vago, um ramo do sistema nervoso que sai do cérebro e percorre o pescoço, o tórax e chega até o final do abdômen — o nome vem do latim vagus e faz menção ao fato de ele vagar por regiões tão importantes do nosso corpo.
“Esse nervo faz a conexão com diversos órgãos e vísceras e é responsável por levar informações do cérebro para essas estruturas e vice-versa, ou seja, trazer informações do corpo para a cabeça”, ensina Fregni, que fez uma palestra sobre o assunto na segunda-feira (16) na Digital Journey by Hospitalar, um evento online que reuniu especialistas do setor de saúde do Brasil e da América Latina.
“Uma das estruturas em que o nervo vago se conecta é o baço, um órgão que tem papel importante no sistema imunológico e ajuda a regular a liberação de substâncias inflamatórias”, exemplifica o neurocientista.
O especialista também lembra que o sistema nervoso tem influência direta na imunidade, ao influenciar na produção de hormônios e outras substâncias que afetam o comportamento e a ação das células de defesa.
Será que estimular essa ramificação nervosa poderia, então, contribuir de alguma maneira para controlar a inflamação que agrava ainda mais a Covid-19? Essa é justamente a aposta dos pesquisadores brasileiros.
Mas há uma barreira importante no meio do caminho: em boa parte de sua extensão, o nervo vago é bem profundo e difícil de atingir com ondas elétricas.
Os nervos, representados em amarelo na ilustração, são estruturas do sistema nervoso que fazem a comunicação do cérebro com diversas partes do corpo. O nervo vago faz a conexão com a maior parte dos órgãos e das vísceras do tórax e do abdômen
Science Photo Library
Mas existe uma região do corpo chamada tragus, que fica próxima da entrada da orelha, em que ele se torna superficial e de fácil acesso.
“E nós já temos estudos apontando que a estimulação elétrica do tragus pode trazer excelentes resultados para outras doenças”, aponta Corrêa.
A manipulação do nervo vago é avaliada como uma futura possibilidade de tratamento, por exemplo, para depressão, epilepsia, dor crônica e enxaqueca.
A pesquisa na prática
Corrêa conta que a Uninove inaugurou, em abril de 2021, um hospital para tratamento exclusivo da Covid-19.
“Vimos ali uma oportunidade de avaliar a estimulação elétrica do nervo vago em pacientes graves que seriam internados na unidade”, contextualiza.
Após a aprovação dos comitês de ética, a pesquisa foi iniciada e já recrutou 18 voluntários.
“Eles recebem a estimulação duas vezes ao dia, durante uma semana. Em paralelo à terapia, são feitos exames de sangue, em que medimos a presença de substâncias inflamatórias, como a interleucina 6, a interleucina 10 e a proteína C-reativa”, descreve a especialista.
Todos os indivíduos respondem questionários e têm os batimentos cardíacos e a frequência respiratória monitorados. Eles também passam por novas consultas e avaliações em sete e 14 dias após terminarem as sessões.
A fisioterapeuta garante que as ondas elétricas são leves e não queimam ou causam dor. O participante sente, no máximo, uma sensação de formigamento no local onde o eletrodo é instalado.
Detalhe importante: apenas metade dos pacientes recrutados recebe a estimulação elétrica de verdade. Na outra parcela, o protocolo é exatamente igual (inclusive com a colocação do eletrodo no tragus), mas não há emissão de uma corrente elétrica.
“Isso é necessário para realizarmos a comparação entre os grupos e obtermos os resultados”, diz Corrêa.
Vale ressaltar ainda que todos os voluntários recebem o tratamento padrão para os casos graves de Covid-19, inclusive com a suplementação de oxigênio e o uso de remédios anti-inflamatórios quando necessário.
Os próximos passos
Corrêa diz que falta incluir apenas dois voluntários para concluir o estudo piloto, mas a equipe enfrenta dificuldades para encontrar novos participantes.
“Ultimamente, os pacientes estão chegando ao hospital com quadros muito leves, em que ficam três dias e recebem alta, ou muito graves, em que já vão direto para intubação”, descreve.
Para integrar o estudo, a pessoa precisa estar num estágio intermediário entre esses dois extremos: ela necessita estar internada, ter menos de 10 dias de sintomas e usar no máximo oxigenação suplementar, mas sem intubação.
A expectativa dos especialistas é finalizar a parte prática do experimento nas próximas semanas, para reunir os resultados e escrever os relatórios durante o mês de setembro.
Se os resultados forem bons, o próximo passo para avaliar a estimulação elétrica do nervo vago em pacientes com Covid-19 grave envolve uma pesquisa bem maior, possivelmente com centenas (ou até milhares) de participantes.
Não custa reforçar, portanto, que atualmente essa terapia é experimental e não tem eficácia ou segurança comprovadas.
E, mesmo que todo o trabalho não seja finalizado a tempo de contribuir para a atual pandemia, ele pode deixar frutos para lidar com outros problemas de saúde.
“A ciência se move devagar e exige tempo e investimento para trazer resultados. As pesquisas maiores costumam demorar dois anos ou mais para serem finalizadas”, estima Fregni.
“Se conseguirmos entender um pouco melhor o papel do nervo vago no controle da inflamação, já teremos contribuído”, finaliza.
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