“Cumprir teto de gasto não basta para fazer o ajuste fiscal”, diz Almeida
O Brasil corre o risco de passar os próximos cinco anos com déficits nos gastos do governo. Logo, cumprir o teto de gastos não será mais suficiente para o país fazer o ajuste fiscal. É o que alerta Mansueto Almeida, economista-chefe do banco BTG Pactual (do mesmo grupo da EXAME) e ex-secretário do Tesouro Nacional.
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Segundo Almeida, toda a economia projetada com a implementação da lei do teto de gastos, de 2017 – algo que chegaria ao patamar de 200 bilhões de reais em 2026 – não irá acontecer.
“No ano passado, o Brasil perdeu 80 bilhões de arrecadação, isso significa menos 1,3% do PIB. E se não recuperar essa arrecadação que perdeu, o país vai passar pelo menos mais cinco ou seis anos com déficit, mesmo cumprindo o teto de gastos”, diz o economista.
Ou seja, o governo irá precisar cortar mais de um lado e buscar mais recursos de outro, o que exige acelerar na agenda de reformas econômicas. Leia a seguir a entrevista completa:
A discussão sobre o Orçamento de 2021, que já foi aprovado, ainda se arrasta há semanas. O que precisa ser efetivamente resolvido?
O que aconteceu foi que o Orçamento aprovado foi muito acima do que tinha sido negociado com o Congresso, que havia fechado emendas parlamentares na casa de 16 bilhões de reais. Só que o projeto do relator, que veio com emendas de 30 bilhões de reais, foi aprovado. O que exige cortar outros itens do Orçamento, que não podem ser cortados.
Todos concordam – Executivo e o próprio Congresso – que o orçamento tem que ser corrigido. O impasse agora é de que forma vai se fazer essa correção. A única forma de fazer o conserto é por meio de uma PLN, projeto de lei do Congresso Nacional.
O governo gostaria de vetar toda a emenda do relator, enviar imediatamente mandar um novo projeto de lei ao Congresso, que aumenta a despesa obrigatória que está subestimada e recompõe parte das emendas do relator. Já o Congresso quer que o presidente sancione o orçamento sem nenhum veto e então que uma nova PLN seja enviada.
Qualquer que seja a solução – com vetos ou sem vetos – vai ter que ser modificado o orçamento. Os dois lados concordaram que tem que enviar uma PLN para consertar o Orçamento. Agora tem que conversar e ver o que é possível para dar segurança jurídica para todo mundo. Acho que está bem perto de um acordo.
Apesar das emendas que vieram a mais, o Orçamento encolheu muito?
Quando foi aprovado o teto de gastos, em 2017, o teto seria corrigido pela inflação acumulada até junho. No ano passado, o IPCA até junho foi baixo, 2,1%. Esse percentual permitiu um crescimento do teto para o ano de 2021 de apenas 31 bilhões de reais. Foi isso que causou um orçamento tão apertado este ano.
As despesas obrigatórias tradicionalmente crescem entre 60 e 70 bilhões por ano. Previdência, seguro desemprego, abono salarial, Benefício de Prestação Continuada, entre outros são corrigidos por outro índice, o INPC, que no ano passado foi 5,45%. Logo, era impossível fazê-las caber nesse aumento de 30 bilhões, obrigando um corte na parte discricionária, coimo investimentos e um bocado de coisa. Resumindo: o índice que corrigiu as despesas obrigatórias foi muito maior do que o índice que corrigiu o teto.
Mas a perspectiva é de uma folga orçamentaria em 2022. Por que isso ocorre?
Em 2022, será o contrário ao que vemos hoje. A inflação aumentou muito no segundo semestre do ano passado e no primeiro semestre deste ano. Então, quando o Orçamento de 2022 for construído, a inflação acumulada até julho desse ano vai estar nos nossos cálculos em 7,5%. O que trará uma folga orçamentária, que nos nossos cálculos será de 111 bilhões de reais. O governo estima um pouco menos, 106 bilhões.
O que significa que no próximo ano será possível aumentar a despesa discricionária, inclusive, investimento. No início do governo Bolsonaro, ninguém trabalhava com essa hipótese de a inflação dar um pulo, até o meio do ano, e depois cair. O Orçamento mais duro para ele cumprir seria justamente o de 2022. Agora não.
De qualquer forma, o Brasil tem um déficit grande para lidar este ano…
Este ano vai ter um buraco fiscal muito grande, cujo déficit programado é de 247 bilhões, o equivalente a 3% do PIB. É verdade que nesse ano a gente vai ter um buraco grande, mas ele é bem menor do que o do ano passado. A despesa em 2020 foi de quase 2 trilhões de reais, o equivalente a 26% do PIB. O déficit no ano passado foi de mais de 700 bilhões de reais. Ou seja, passamos de um déficit primário de 10% do PIB para 3% do PIB.
Agora a notícia ruim: no ano passado, o Brasil perdeu 80 bilhões de arrecadação, isso significa menos 1,3% do PIB. E se não recuperar essa arrecadação, o país vai passar pelo menos mais cinco ou seis anos com déficits, mesmo cumprindo o teto de gastos.
Ou seja, quando a regra completa dez anos e então pode mudar, ela não é mais suficiente para o país fazer o ajuste fiscal que o Brasil precisa. O governo terá que fazer um esforço para recuperar arrecadação que ele perdeu, como revisar benefícios tributários e insistir na agenda de reformas.
Como foi estimada a regra em 2017, o Brasil chegaria em 2026 com um superávit primário de 2 ,5% do PIB, o equivalente a pouco mais de 200 bilhões de reais de hoje. Agora essa economia não é mais possível, dada a perda de arrecadação.
Mas a retomada da atividade econômica não compensaria essa perda …
O problema é que as projeções do próprio governo não mostram essa recuperando de arrecadação nos próximos anos. A receita líquida do governo central em média 2016 a 2018, foi de 17,5%do PIB (em 2019 houve uma receita extra muito grande, que veio da renegociação da cessão onerosa, mas vamos deixar isso de lado). Em 2020, ela foi de 16,2% do PIB – uma perda de 1,3% do PIB.
E a projeção do governo federal é que este ano a receita líquida chegue em 16,4% e, nos próximos anos, seja de 16,2% do PIB. É como se não houvesse nenhuma recuperação. É muito arriscado o país ficar com mais cinco anos de déficit primário, com as contas no vermelho e a dívida crescendo.
Qual o maior risco para as contas públicas? .
A recuperação da economia no segundo semestre depende da redução do distanciamento social, o que só será possível se boa parte da população estiver vacinada. Para que isso não ocorra, é fundamental que a gente consiga sucesso na campanha de vacinação.
O problema é que a vacinação foi lenta nos três primeiros meses do ano. Se o programa que foi divulgado pelo Ministério da Saúde, com as vacinas contratadas, se concretizar devemos ver uma melhora. Houve um aumento da vacinação, mas o ideal era aumentar para um 1,5 milhão de pessoas vacinas por dia. Aí, começa o segundo semestre muito melhor.
Por isso que quando há notícia sobre atraso na vacinação, há um impacto na economia, porque a gente sabe que essa pandemia se prolongar muito, os 100 bilhões reais que foram reservados – e não afetam o teto de gastos – pode ser muito maior.
A demora nas decisões, como Orçamento, não tem um impacto indireto nessa percepção do mercado?
É claro que quando uma medida necessária é protelada é sempre ruim. Mas a intensidade dessa segunda onda da covid, que embora foi alertada por muitas pessoas o risco que ela viria, ninguém esperava que ela fosse tão feroz.
Na primeira onda, morriam mais de 1 mil pessoas por dia. Não conheço estimativas com um número de mortes acima de 3 mil por dia, como está acontecendo, em função de uma mutação do vírus que é muito mais violento.
Em fevereiro, a economia parecia sim estar mostrando um dinamismo, apesar de ainda ter passado por toda a crise da pandemia. Mas quando intensificou em março, começou a piora. Do ponto de vista do mercado, o pior mesmo foi a possibilidade da gente passar um período mais longo de distanciamento social, tendo um gasto fiscal muito maior. E aí veio o risco de quebra do teto de gasto.
Diante dessa perspectiva de déficits nos próximos cinco e seis anos, há espaço para o governo se engajar em reformas econômicas no meio da pandemia?
Nos últimos 60 dias, a gente fez reformas muito boas, como a independência do Banco Central, um projeto importante que se arrastava há anos. A PEC Emergencial acabou aprovada mais rápido do que os mais otimistas no governo imaginavam. Saiu também o novo marco regulatório do setor de gás.
Ainda assim o risco fiscal não diminuiu e chegou até a aumentar por causa de vários ruídos em Brasília por causa da quebra do teto. Acho que ainda há a possibilidade de agendas importantes avançarem, como a reforma administrativa. O presidente da Câmara, Arthur Lira, tem se colocado a favor desse debate. Tem a própria privatização da Eletrobrás, que precisa ser votada até maio.
A reforma tributária está sendo discutido, mas acho muito difícil sua aprovação porque ainda tem duas ou três propostas em debate. E ainda precisa saber qual será a proposta do governo. Mas, sem dúvida, a reforma tributária seja talvez a mais importante do Brasil a ser feita.
Desde 2015, o Brasil já teve dois anos de recessão, depois anos seguidos de baixo crescimento, e agora a crise sanitária. Há risco de redução do PIB potencial?
As crises são consequências de um país que não fez reformas. Ainda que seja algo atípico, a pandemia nem reduz a capacidade da economia de crescer. Quando um país cresce pouco, que já era o nosso caso antes da pandemia, isso foi resultado de vários erros do passado e da falta de reformas. No Brasil, estima-se que o PIB potencial hoje seja menor que 2% ao ano. Mas se o país vai crescer 2%, 1,5% ou 3% ao ano, depende de nós.
E a gente sabe o que é o país precisa fazer para crescer. Precisa ter um ambiente macroeconômico estável, no qual não há problemas com déficits elevados, que haja uma dívida que o governo consiga pagar, que isso não pressione os juros. Isso naturalmente facilita o aumento de investimentos, a busca de ganhos de produtividade e de inovação.
Se o Brasil conseguiu avançar no ajuste fiscal, se integrar mais com o resto do mundo e mostrar para investidor externo que respeita as leis ambientais, naturalmente a gente vai conseguir aumentar a estimativa de PIB potencial.
De que forma isso chega para as empresas?
É preciso ter um ambiente para que as empresas sejam mais produtivas, onde há incentivo à inovação, com acesso a insumos importados e tecnologia. Temos que ter um bom sistema de educação, que de fato prepare a nossa força de trabalho, e é um mercado de trabalho flexível, que já avançou muito em função da mudança na lei trabalhista.
É fato que houve muitos avanços. Estamos em 2021, mas a taxa de juros do Brasil no início de 2016 era 14,25% ao ano a Selic. Hoje ela está em 2,75% e numa trajetória de alta, mas estima-se que ela vai terminar o ano por volta de 5%. É uma taxa que é quase um terço do que era há cinco anos atrás.
O mercado de capitais brasileiro está vibrante mesmo com essa crise terrível. Nos primeiros três meses do ano, foi registrado recorde de captação direta de empresas em mercados de capitais. Se a gente fez o dever de casa, independentemente da pandemia, o potencial de crescimento do Brasil e, consequentemente, das empresas vai aumentar. Agora a gente vai ter que continuar com as reformas econômicas.
Mas há ainda uma agenda imensa para ser atacada…
Com certeza, mas a gente não vai fazer toda essa agenda em um ou dois anos. É uma sequência de governos. Nos últimos cinco anos, tivemos dois anos e meio de um governo que veio de um processo de impeachment, que foi o governo Temer, e mais dois anos e meio do governo Bolsonaro.
Ou seja, primeiro um governo com baixas taxas de aprovação e depois um outro governo que no início não tinha nem mesmo base parlamentar. E mesmo assim o país conseguir fazer reformas muito importantes.
Houve uma mudança no entendimento da necessidade de reformas no país?
Mudou um pouco sim, porque antes determinados temas a discussão nem começava alguns anos atrás. Por exemplo, falar em privatização era uma discussão muito carregada. Hoje há o debate está mais aberto, o que não significa que o governo vai conseguir privatizar tudo o que quer.
O Brasil nos últimos 40 anos teve duas décadas perdidas – a primeira foi de 81 a 90 e a segunda de 2011 a 2020 – e isso permitiu se aprofundar nos debates e promover mudanças.
Acho que de alguma forma o debate político melhorou um pouco. Mas vamos deixar bem claro: qualquer reforma numa democracia necessariamente precisa de debate político e do Congresso Nacional.
A polarização política não atrapalha esse debate?
Numa democracia, para avançar nas questões que precisamos para o país crescer, necessariamente precisamos avançar no bom debate político. Não vamos esperar nenhum iluminado para resolver nossos problemas.
O fracasso ou sucesso da continuidade de reformas vai depender muito do ambiente político e do governo, em conseguir um bom relacionamento e um comunicação para mostrar à sociedade e ao Congresso o que é necessário fazer. O grande mérito dos últimos anos do Brasil foi que, às vezes pela liderança do Executivo e às vezes pela liderança do Congresso Nacional, o país conseguiu discutir e aprovar reformas que seis oito anos atrás eram consideradas muito difíceis.
Ainda que este governo não consiga aprovar a reforma tributária é bom que a discussão comece agora. Isso vai ajudando as pessoas a entenderem o problema do nosso complexo sistema tributário.
O governo é criticado justamente pelas crises que ele mesmo cria, seja na pandemia, seja pelos embates com os outros Poderes…
O governo tem que melhorar a comunicação. Ela é essencial no setor privado, é essencial no setor público. Se as pessoas não entendem os benefícios de uma proposta do governo, não vai ter apoio político no Congresso para aprovar. Por isso, é importante que o Executivo lidere esse debate político, porque muitos dos problemas que existem na economia não são percebidos pela sociedade.
São duas coisas: primeiro, é preciso se comunicar melhor. E a segunda é ter o bom debate político, pelo qual se vê os pontos divergentes e pode-se corrigir essas propostas. As reformas não vão se esgotar em um ou dois anos. Esta não é uma tarefa apenas para este governo, mas também para os próximos anos.