Por que a medicina alemã está reaprendendo a fazer abortos
A falta de treinamento está restringindo o acesso ao aborto na Alemanha, mas os alunos de medicina estão tentando mudar esse cenário. Segundo médicos, o tamanho do mamão se assemelha ao útero
BBC
O aborto legal está disponível às mulheres em toda a Alemanha desde os anos 1970, mas o número de médicos que realizam o procedimento está diminuindo. Mas existem estudantes e jovens médicos que querem preencher essa lacuna.
A mulher da clínica de planejamento familiar olhou para Teresa Bauer e sua amiga severamente. “E o que você está estudando?” perguntou ela à amiga, que acabara de descobrir que estava grávida, e queria fazer um aborto.
“Estudos culturais”, respondeu ela.
“Ahhh, então você está vivendo um estilo de vida colorido?”, respondeu a mulher.
Bauer ficou quieta, escondendo sua raiva.
Estressada com a descoberta de uma gravidez acidental, a amiga de Bauer pediu que ela marcasse as consultas necessárias para organizar um aborto.
Não era apenas o caso de ligar para o clínico geral de sua amiga para marcar um horário para o procedimento.
Primeiro, ela precisava marcar uma consulta de aconselhamento, que foi projetada para “proteger a vida não nascida”, como diz a lei alemã, e desencorajar a mulher de prosseguir. Algumas das clínicas que prestam o serviço são administradas por igrejas — Bauer teve o cuidado de evitá-las, temendo receber críticas.
‘Pensei que seria mais fácil’
Aulas sobre abortos utilizam frutas tropicais, como mamão
BBC
Em seguida, ela precisava encontrar um médico que prescrevesse pílulas para um aborto medicamentoso precoce. No ano passado, a lei passou a permitir que os médicos divulguem que trabalham com abortos, mas eles não podem indicar os tipos de serviço que oferecem, então Bauer teve que ligar para os consultórios um por um.
“Berlim é uma cidade liberal, então pensei que seria mais fácil do que era”, diz ela.
“Mesmo quando íamos buscar a pílula, a assistente do médico ficava perguntando: ‘Você tem certeza?’ Ver o que minha amiga teve que passar e como ela foi tratada me deixou com tanta raiva que decidi fazer algo a respeito.”
Bauer era estudante do terceiro ano de medicina na época, então, alguns dias depois, ela mandou um e-mail para a Medical Students for Choice Berlin (Estudantes de Medicina Pró-Escolha de Berlim), dirigido por alunos de sua universidade, dizendo que queria começar o voluntariado.
Ela agora trabalha com eles, fazendo campanha para melhorar o treinamento sobre aborto para estudantes de medicina e aumentando a conscientização sobre os obstáculos que as pessoas que procuram o aborto podem enfrentar.
Embora a Alemanha seja considerada um país liberal, suas leis reprodutivas são surpreendentemente restritivas. O aborto não é realmente legal — ele é apenas descriminalizado até a 12ª semana após a concepção, desde que a mulher tenha passado por sessão de aconselhamento, seguida por um período de espera de três dias.
Por essa razão, técnicas de aborto não são ensinadas nas escolas de medicina e, por isso, há uma escassez de médicos realizando o procedimento.
Em algumas partes da Alemanha, as mulheres precisam viajar longas distâncias para chegar a uma clínica de aborto. Em 2018, mais de 1.000 delas viajaram até a Holanda, onde o processo é mais simples e o direito se estende até 22ª semana de gestação.
Alguns médicos também viajam da Bélgica e da Holanda para realizar abortos em cidades do norte da Alemanha, como Bremen e Münster.
Código penal da Alemanha
Seção 218 declara o aborto ilegal:
218a prevê “exceção de responsabilidade” para abortos realizados no primeiro trimestre de gravidez, ou posteriormente em casos de necessidade médica — sujeito a aconselhamento e espera de três dias
219a proíbe a publicidade de serviços de aborto, embora desde 2019 seja possível aos médicos divulgar o fato de que fazem o aborto, desde que não deem mais detalhes
A Medical Students for Choice Berlin está tentando resolver as dificuldades enfrentadas por mulheres que buscam um aborto. Fazem isso por meio de workshops com mamão — o procedimento é testado em frutas tropicais.
O tamanho da fruta é um substituto útil para o útero humano, e suas sementes são aspiradas para demonstrar como o feto pode ser removido. A ideia é colocar os alunos em contato com o tema e incentivá-los a buscar uma formação especializada após o término da graduação.
O grupo foi fundado em 2015 por Alicia Baier, que afirma só ter sabido das dificuldades enfrentadas por mulheres que buscam o aborto por acaso, em um congresso durante seu quarto ano de medicina.
“É um assunto tabu e ninguém fala sobre isso, então a maioria das pessoas não sabe sobre os problemas de acesso até que eles próprios precisem fazer um aborto”, diz ela.
Ela então descobriu que a maioria dos médicos que realizam abortos na Alemanha tem 60 e 70 anos e deve se aposentar em breve. “Eles são a geração que experimentou as lutas anteriores pelos direitos das mulheres”, diz ela. “Eles se politizaram. Mas as gerações mais jovens nunca aprenderam como fazer isso.”
Baier entrou em contato com um grupo americano chamado Medical Students for Choice, que explicou que o mamão pode ser usado em demonstrações do procedimento. “Eles até postaram as ferramentas para usarmos”, acrescenta ela. Um palestrante então a colocou em contato com alguns ginecologistas que poderiam receber os workshops. “Eles me disseram: ‘Temos esperado tanto tempo por alunos como você!'”
Na Baixa Baviera, uma região com uma população de 1,2 milhão de pessoas na fronteira com a Áustria e a República Tcheca, o último ginecologista que fazia abortos desistiu da aposentadoria há cinco anos, já que nenhum outro médico na região 80% católica concordou em substituí-lo. Mas Michael Spandau, de 72 anos, parou novamente de trabalhar em março, porque sua idade o colocou em risco durante o surto de covid-19.
“As mulheres têm que viajar para Munique ou Regensburg, a 130 km de distância”, disse Thoralf Fricke, da filial local da organização de caridade de planejamento familiar Pro Familia, situada no centro da cidade de Passau. “Se você não tem carro, precisa viajar de trem. Isso é caro. Se você mora na zona rural, leva três horas para cada trajeto. E é um risco para sua saúde. Essa operação não é como tirar um dente. Você pode ter complicações, como problemas de pressão arterial”, explica Fricke.
Dificuldade nas áreas rurais
Há também uma grande população de mulheres refugiadas na região, que muitas vezes ficam alojadas em áreas rurais enquanto aguardam a aprovação de seus pedidos de asilo. No geral, elas não têm redes de apoio que possam ajudá-las a encontrar acomodação para pernoitar quando viajam para realizar um aborto.
Rose, que é da Nigéria e mora a 40 minutos de ônibus de Passau, precisou fazer um aborto em dezembro do ano passado. “Minha filha tem seis meses e eu disse ao meu namorado: ‘não aguento mais ter outra criança tão cedo'”, conta ela.
Após o procedimento, ela conseguiu passar a noite na casa de uma ativista pró-escolha, Lea. “Fiquei me sentindo muito tonta depois”, lembra ela. “Eu tive muita sorte de estar com Lea porque ela me apoiou enquanto eu caminhava. Se eu tivesse que pegar o ônibus, talvez eu tivesse desmaiado.”
A Associação Alemã de Ginecologistas disse à BBC: “Na Alemanha, é responsabilidade dos estados federais dar aconselhamento e assistência suficientes às mulheres grávidas em situações de crise. A lei declara que ninguém é obrigado a participar de um aborto. A única exceção é quando a vida da mãe está ameaçada.”
“Os ginecologistas e a equipe médica são livres para decidir, seguindo sua religião e sua ética, se desejam realizar ou negar o aborto. Ninguém deve ser forçado. Em regiões onde o catolicismo é predominante, há menos médicos e enfermeiras. Então, as mulheres devem levar em conta as distâncias mais longas.”
O hospital de Passau disse que a prefeitura decidiu em 2007 que os abortos só seriam realizados no hospital em caso de emergência.
O direito ao aborto tem uma história longa e complexa na Alemanha. Na era nazista, realizar um aborto em uma alemã branca era crime capital, a menos que o feto fosse deformado. Em contraste, mulheres de outros grupos étnicos foram incentivadas a abortar. Anos depois, a Alemanha Oriental comunista tinha leis mais liberais, mas a postura mais conservadora do Ocidente se tornou padrão após a reunificação em 1990.
A lei que proíbe a propaganda de serviços, 219a, foi criada na era nazista. Recentemente ela foi usada por ativistas antiaborto para mover ações judiciais contra médicos em todo o país.
Thoralf Fricke conta que houve um aumento nas ocorrência de ódio nos últimos dois anos, com ativistas enviando ameaças de morte e bonecos de feto para ele. Antes da pandemia, os manifestantes ficavam do lado de fora da clínica Pro Família, onde as mulheres procuram aconselhamento antes do aborto.
Mas o movimento pró-escolha também está ficando mais forte. Como resultado da campanha do Medical Students for Choice, o hospital universitário Charité, em Berlim, no ano passado incluiu o aborto em seu currículo pela primeira vez, assim como a Universidade de Münster. Se a quarentena permitir, o grupo planeja realizar um fim de semana de treinamento com estudantes de medicina de todo o país em Berlim, nos próximos meses.
Alicia Baier agora concluiu seus estudos e está fazendo um treinamento em um consultório médico que oferece abortos. Aqui, ela vê em primeira mão como a falta de acesso afeta as mulheres. “Um médico fez uma mulher esperar desnecessariamente uma semana a mais, o que a empurrou além do limite para um aborto com pílulas”, explica ela. Após nove semanas, a única opção é o aborto cirúrgico pela técnica de vácuo.
Baier também entrou em contato com uma jovem de 19 anos que sofreu consequências sérias. Ela havia tentado fazer um aborto em casa por falta de informação sobre onde conseguir um procedimento seguro. Seu útero teve que ser removido.
Embora mais alunos de medicina estejam aprendendo o procedimento, diz Baier, sua idade significa que ainda haverá uma lacuna nos serviços em um futuro próximo.
“Levará vários anos antes de conseguirmos executar nossas próprias práticas”, diz ela. “E antes disso, com a aposentadoria dos médicos atuais, teremos grandes problemas.”
“Algumas mulheres não compareciam às consultas”, diz. “Achamos que elas foram intimidadas.”
Por algumas semanas a cada mês, Lucie parecia se tornar uma pessoa diferente — alguém que sofria de inúmeros problemas mentais e físicos — e ela não conseguia entender por quê. Ela passou anos procurando um médico que pudesse lhe dar uma resposta, e foi necessária uma histerectomia aos 28 anos para curá-la.