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Camundongos transgênicos usados em pesquisas de Covid-19 viram alvo de disputa mundial

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Camundongos transgênicos usados em pesquisas de Covid-19 viram alvo de disputa mundial


Cientistas da Fiocruz Minas estão na ‘fila’ para adquirir animais de laboratório geneticamente modificados, que podem ser infectados pelo novo coronavírus. Camundongo usado na pesquisa do novo coronavírus foi batizado de k18-hACE2
Divulgação
O grupo da Fiocruz Minas que pesquisa a vacina contra Covid-19 está há semanas esperando uma encomenda chegar dos Estados Unidos para dar início aos testes de eficácia.
O pedido foi feito em abril: três casais de camundongos transgênicos, um dos poucos no mundo capazes de serem infectados pelo vírus que causa a Covid-19.
Mas, além da demanda dos brasileiros, o Jackson Laboratory tem uma fila de pedidos de cientistas do mundo inteiro.
Camundongos de laboratório comuns não são suscetíveis ao vírus que causa a Covid-19. Ou seja, mesmo em contato direto com o agente patogênico, a probabilidade de ficarem doentes é pequena.
O k18-hACE2, como foi batizado o modelo vendido pela instituição, foi geneticamente modificado justamente para ser infectado pelo Sars-Cov-2 — e, por isso, é um ingrediente fundamental nas pesquisas envolvendo o novo coronavírus.
A demanda é concentrada, diz o coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Vacinas (INCTV) e coordenador da equipe da Fiocruz Minas, Ricardo Gazzinelli, porque o laboratório é possivelmente o único a produzir em escala “comercial” esses camundongos geneticamente modificados.
Neurocientista Cat Lutz, diretora do Jackson Laboratory, diz que espera zerar a fila de espera pelos camundongos transgênicos no fim de julho
Divulgação
Um e-mail de Wuhan e uma amostra de Iowa
A história começa com um e-mail de um funcionário do Jackson Laboratory de Xangai, que escreveu à diretora do repositório de camundongos e do Centro de Doenças Raras do laboratório nos EUA, Cathleen Lutz, no início de fevereiro.
Assustado com a proporção que a epidemia tomava na China — e em lockdown em Wuhan, onde vive parte de sua família —, ele perguntava se a equipe não poderia ajudar de alguma forma.
Daí veio a ideia de desenvolver um camundongo que pudesse ser usado nas pesquisas para entender melhor a doença.
Lutz então entrou em contato com o cientista Stanley Perlman, da Universidade de Iowa, que em 2007, junto com o colega Paul McCray, já havia desenvolvido um animal geneticamente modificado para estudar a Sars, também causada por um coronavírus, o Sars-Cov.
“Perlman chegou a escrever que os coronavírus continuavam sendo uma ameaça potencial, e ele estava certo”, disse a neurocientista à BBC News Brasil.
Animais são enviados por via aérea em caixas adaptadas
Divulgação
Em 48 horas, o pesquisador enviou as amostras de sêmen do camundongo transgênico, então usadas pelo laboratório para inseminar fêmeas dos camundongos de laboratório “comuns”.
A primeira ninhada nasceu em março e, a partir daí, a instituição vem construindo uma colônia de camundongos suscetíveis ao coronavírus.
O volume de animais vendidos é mantido em confidencialidade, mas Lutz estima que a demanda chegue nos próximos meses a “dezenas de milhares”.
Ratos de laboratório ‘comuns’ não são infectados pelo novo coronavírus – por isso as pesquisas usam animais geneticamente modificados
Divulgação
O que eles têm de diferente
Os camundongos modificados receberam o gene humano para o receptor ECA2 (enzima conversora da angiotensina 2), a principal porta de entrada para o novo coronavírus nas células humanas.
O Sars-Cov-2 se liga à proteína ECA2, que fica na superfície da célula, como uma chave em uma fechadura, o que facilita sua entrada.
Uma vez lá dentro, o vírus usa a estrutura celular para se reproduzir, depois a destrói e passa a infectar outras células, usando-as como uma espécie de fábrica de novos vírus.
A previsão inicial para a entrega dos animais aos cientistas brasileiros era junho, mas, segundo Lutz, o laboratório reduziu a velocidade inicialmente prevista de expansão da colônia porque queria ter certeza de que os animais, originalmente criados para pesquisas com outro tipo de coronavírus, responderiam como esperado.
O modelo do camundongo é exatamente o mesmo desenvolvido por Perlman e McCray.
Conforme o retorno que têm recebido dos laboratórios que já receberam os animais, a infectividade é alta e rápida, o que é considerado positivo.
“É tudo muito rápido. Você sabe em 5 dias se os anticorpos funcionam ou não”, acrescenta, referindo-se ao estudo de vacinas.
A neurocientista diz saber que “parece uma eternidade quando você está esperando seu camundongo”, e emendou que espera “zerar” a fila de pedidos até o fim de julho.
O papel dos camundongos transgênicos na pesquisa
Enquanto isso, a equipe coordenada por Gazzinelli tem feito testes com camundongos tradicionais para estudar a resposta imunológica dos animais à vacina — para isso, não é preciso que eles fiquem “doentes”.
Os camundongos geneticamente modificados serão usados nos chamados estudos de desafio, para se verificar a eficácia: depois de aplicada a vacina, tenta-se infectá-los com o vírus. Caso isso não aconteça, tem-se um indicativo de que a substância funciona.
Mas a previsão, no cronograma atual, é que essa etapa tenha início em setembro. Até lá, quando a encomenda finalmente chegar, o laboratório da Fiocruz Minas deve trabalhar para criar sua própria colônia de camundongos transgênicos.
“Assim podemos distribuir para outros laboratórios no país”, diz Gazzinelli. A pesquisa da Fiocruz é uma das que está em estágio mais avançado entre as iniciativas brasileiras.
O cientista explica que há outros animais usados nas pesquisas de vacinas, como hamsters, por exemplo, mas os camundongos são mais baratos e mais “versáteis”.
Não por acaso, o Jackson Laboratory tem 11 mil linhagens de camundongos geneticamente modificados em seus tanques de criopreservação. Cada um deles foi criado com um propósito diferente — uns para o estudo de alguns tipos de câncer, outros para a pesquisa da diabetes ou de doenças raras, por exemplo.
A instituição sem fins lucrativos foi criada em 1929 e é uma referência em genética. Um de seus pesquisadores, George Snell, foi um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1980 pela pesquisa sobre o complexo principal de histocompatibilidade (MHC, na sigla em inglês), que foi de grande importância para a área de transplantes de órgãos.
Vacinas brasileiras
A pesquisa brasileira da Fiocruz Minas pela vacina é uma das 160 catalogadas até o início de julho pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Além dela, estão também em curso no país as conduzidas pelo Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor), pelo Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP) e pelo Instituto Butantã, em São Paulo.
A iniciativa da Fiocruz Minas é voltada para o desenvolvimento de uma vacina com o vírus da influenza atenuado — que funcionaria, assim, tanto para a imunização contra a influenza quanto contra a Covid. A ideia é que ela seja administrada por via nasal, local em que há grande concentração dos receptores usados pelo novo coronavírus.
A substância então entraria nas células e induziria a produção de anticorpos contra o Sars-Cov-2.
Gazzinelli está à frente do INCT-Vacinas desde 2005. Trabalhou no desenvolvimento da vacina contra leishmaniose e nas pesquisas de vacinas contra malária e doença de chagas.
Segundo ele, a expectativa “otimista” é que a vacina contra a Covid-19 esteja pronta no fim de 2021.
Apesar de haver iniciativas em outros países, inclusive em estágio clínico, com testes em seres humanos, ele ressalta que as pesquisas brasileiras continuam sendo importantes porque não se sabe ainda o que de fato funcionará e, em caso positivo, qual grau de acesso o Brasil teria a uma substância produzida fora.
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