Charles A. Kupchan: Biden estava certo
Por: Charles A. Kupchan
É doloroso ver o Talibã dominar o Afeganistão, desfazendo em questão de meses duas décadas de esforços do povo afegão e da comunidade internacional para construir um estado decente, seguro e funcional. O Talibã efetivamente encerrou sua impressionante varredura do país no domingo, movendo-se para Cabul e forçando o presidente Ashraf Ghani a fugir.
A tomada praticamente incontestada do Talibã sobre o Afeganistão levanta questões óbvias sobre a sensatez da decisão do presidente dos EUA, Joe Biden, de retirar os EUA e as forças de coalizão do país. Paradoxalmente, porém, a rapidez e a facilidade do avanço do Talibã apenas reafirma que Biden tomou a decisão certa – e que ele não deve reverter o curso.
A ineficácia e o colapso das instituições militares e governamentais do Afeganistão comprovam amplamente o ceticismo de Biden de que os esforços liderados pelos Estados Unidos para apoiar o governo em Cabul em algum momento permitiriam que ele se sustentasse por conta própria. A comunidade internacional gastou quase 20 anos, muitos milhares de vidas e trilhões de dólares para ajudar o Afeganistão – derrubando o Al-Qaeda; derrotando o Talibã; apoiando, aconselhando, treinando e equipando os militares afegãos; fortalecendo as instituições governamentais; e investindo na sociedade civil do país.
Significativo progresso foi feito, mas não o suficiente. Como o rápido avanço do Talibã revelou, mesmo duas décadas de constante apoio não conseguiram criar instituições afegãs capazes de se manter.
Isso porque a missão foi fatalmente falha desde o início. Foi uma missão ingênua tentar transformar o Afeganistão em um estado centralizado e unitário. A difícil topografia do país, a complexidade étnica e as lealdades tribais e locais produzem uma fragmentação política que é permanente. Sua problemática vizinhança e hostilidade à interferência externa tornam a intervenção estrangeira perigosa.
Essas inevitáveis condições garantiram que qualquer esforço para transformar o Afeganistão em um estado moderno fracassaria. Biden fez a difícil e correta escolha de desistir e encerrar um esforço derrotado em busca de um objetivo inatingível.
O caso da retirada também foi escorado pela realidade de que, mesmo que os Estados Unidos tenham falhado na construção da nação, eles alcançaram seu principal objetivo estratégico: prevenir futuros ataques aos EUA ou a seus aliados a partir do território afegão. Os Estados Unidos e seus parceiros de coalizão dizimaram o Al-Qaeda no Afeganistão e no Paquistão. O mesmo se aplica ao braço afegão do Estado Islâmico, que demonstrou não ter capacidade para realizar ataques internacionais a partir do Afeganistão.
Nesse ínterim, os Estados Unidos construíram uma rede global de parceiros com os quais lutam contra o terrorismo em todo o mundo, compartilham informações relevantes e aumentam conjuntamente as defesas domésticas contra ataques terroristas. Os EUA e seus aliados são hoje alvos muito mais difíceis do que eram em 11 de setembro de 2001. O Al-Qaeda não conseguiu realizar um grande ataque no exterior desde os bombardeios em Londres em 2005.
É claro que não há garantia de que o Talibã não fornecerá novamente um porto seguro para o Al-Qaeda ou grupos semelhantes. Mas esse resultado é altamente improvável. O Talibã está indo muito bem por conta própria e tem poucos motivos para reatar sua parceria com organizações como Al-Qaeda. O Talibã também desejará manter um certo grau de legitimidade e apoio internacional, provavelmente reprimindo qualquer tentação de hospedar grupos que buscam organizar ataques terroristas contra potências estrangeiras. Além disso, esses grupos têm pouco incentivo para tentar se reagrupar no Afeganistão, quando podem fazer isso com mais facilidade em outros lugares.
Finalmente, Biden tem razão em manter sua decisão de encerrar a missão militar no Afeganistão, porque isso é consistente com a vontade do eleitorado americano. A maior parte do público americano, tanto democratas quanto republicanos, perdeu a paciência com as “eternas guerras” no Oriente Médio. O populismo não liberal que levou à eleição de Donald Trump (e à sua quase reeleição) surgiu em parte como uma resposta à percepção da intromissão americana em todo o Oriente Médio. Em um cenário de décadas de descontentamento econômico entre os trabalhadores americanos, recentemente exacerbado pelo impacto devastador da pandemia, os eleitores querem que seus dólares de impostos sejam enviados para o Kansas, não para Kandahar.
O sucesso do esforço de Biden para reparar a democracia americana depende principalmente do cumprimento do investimento doméstico; os projetos de infraestrutura e de política social que agora tramitam no Congresso são passos essenciais na direção certa. Mas a política externa também é importante. Quando Biden se compromete a seguir uma “política externa para a classe média”, ele precisa cumprir sua missão buscando uma forma de governar que conte com o apoio do povo americano.
O Afeganistão merece o apoio da comunidade internacional em um futuro próximo. Mas a missão militar liderada pelos EUA cumpriu seu curso. Infelizmente, o melhor que a comunidade internacional pode fazer por enquanto é ajudar a aliviar o sofrimento humanitário e pressionar os afegãos a buscarem diplomacia, compromisso e moderação enquanto seu país agora busca um equilíbrio político estável e pacífico.
Charles A. Kupchan, membro sênior do Conselho de Relações Exteriores, é professor de Assuntos Internacionais na Universidade de Georgetown e autor de Isolationism: A History of America’s Efforts to Shield itself from the World (Isolacionismo: Uma História dos Esforços dos EUA de se protegerem do mundo).
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