Covid-19: por que a 'terceira onda' do coronavírus em Hong Kong é um alerta
Até pouco tempo atrás, Hong Kong era considerada um exemplo no combate à pandemia de coronavírus. Entenda o que deu errado e quais lições esse caso deixa para outros países lidarem com a pandemia. Infecções em Hong Kong atingiram um recorde, de 149 casos, na quinta-feira (30)
Reuters via BBC
Até pouco tempo atrás, Hong Kong era considerada um exemplo no combate à pandemia de coronavírus.
Apesar de compartilhar uma fronteira com a China continental, onde foram relatados os primeiros casos de covid-19, Hong Kong manteve o número de infecções baixo e foi capaz de evitar medidas extremas de confinamento introduzidas em outras partes do mundo.
No entanto, Hong Kong foi agora atingida não por uma segunda, mas por uma terceira onda de infecções. O governo alertou que o sistema hospitalar pode entrar em colapso e registrou número recorde de novas infecções em um dia.
Veja, a seguir, quais lições esse caso deixa para outros países lidarem com a pandemia e a avaliação de especialistas sobre se devemos realmente falar em várias ondas de covid-19.
Caminho até a ‘terceira onda’
Hong Kong registrou seus primeiros casos de covid-19 no fim de janeiro, o que preocupou a população e levou ao chamado “panic buying”, ou as compras motivadas pelo pânico. Mas o número de infecções permaneceu relativamente baixo e a disseminação foi controlada rapidamente.
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A região viveu o que ficou conhecido como sua “segunda onda” em março, depois que estudantes e residentes no exterior começaram a retornar ao território, levando a um aumento nas infecções importadas.
Em resposta, Hong Kong introduziu controles rigorosos nas fronteiras, proibindo todos os não residentes de entrarem. Além disso, todos os que retornassem eram obrigados a passar por um teste de covid-19 e respeitar uma quarentena de 14 dias, inclusive com o uso de pulseiras eletrônicas para rastrear os recém-chegados e garantir que eles ficassem em casa.
Essas medidas, combinadas com o uso generalizado de máscaras e medidas de distanciamento social, funcionaram: Hong Kong passou semanas sem um caso transmitido localmente, e a vida parecia estar voltando ao normal.
Em junho, eram registrados, em média, menos de 10 novos casos por dia.
Então, como chegou agora a essa “terceira onda”, com mais de 100 novos casos por dia durante nove dias seguidos?
“É bem decepcionante e frustrante porque Hong Kong havia realmente controlado a situação”, diz Malik Peiris, coordenador de virologia da Universidade de Hong Kong.
Ele acredita que houve duas falhas no sistema.
Primeiro, muitas das pessoas que retornaram ao território optaram por passar a quarentena de 14 dias em casa (algo comum em muitos países, como o Reino Unido) e não em “campos de quarentena”.
“Existe uma fragilidade nisso porque outras pessoas que vivem na mesma casa não estão sob nenhuma forma de restrição e ainda circulam”, diz Peiris.
No entanto, ele acredita que o problema mais sério veio da decisão do governo de abrir exceção a vários grupos de pessoas em relação à obrigação de fazer testes e cumprir quarentena quando entraram em Hong Kong.
Hong Kong havia isentado da quarentena cerca de 200 mil pessoas, incluindo marinheiros, tripulantes de aviação e executivos de empresas listadas na bolsa de valores.
O argumento foi de que as exceções são necessárias para garantir que as operações diárias normais continuem em Hong Kong. Também foi dito que essas viagens eram necessárias para o desenvolvimento econômico da cidade.
Hong Kong tem um grande número de ligações aéreas e muitos navios trocam de tripulação por lá. O território também depende de importações da China continental e de outros países para alimentos e bens essenciais.
Falhas e descumprimento de medidas
O médico Joseph Tsang, especialista em doenças infecciosas, descreve as exceções como uma “brecha” significativa que aumentou o risco de infecção, principalmente de marinheiros e tripulantes que também visitaram pontos turísticos e usaram transporte público.
Inicialmente, o governo disse que essas isenções de quarentena não eram responsáveis pela nova onda, mas depois admitiu que havia evidências de que as exceções estavam por trás do último surto.
Eles agora apertaram as regras para as tripulações aéreas e marítimas, mas pode ser difícil de aplicá-las. No início desta semana, um piloto estrangeiro foi visto passeando enquanto aguardava os resultados dos testes da covid-19.
E equilibrar a saúde pública, as preocupações práticas e a economia pode ser difícil. Um sindicato representando pilotos da FedEx pediu à empresa que suspendesse os voos para Hong Kong sob o argumento de que as medidas mais rigorosas contra a covid-19, incluindo estadias obrigatórias em hospitais para pilotos com resultados positivos, gerou “condições inaceitáveis para os pilotos”.
Benjamin Cowling, professor de epidemiologia na Universidade de Hong Kong, diz que a experiência de Hong Kong com problemas na quarentena também pode acontecer em outros países, como no Reino Unido, onde também é feita uma exigência de quarentena de 14 dias em casa.
Outros países, como a Nova Zelândia e a Austrália, têm uma política obrigatória de quarentena em hotéis, que é “um bom conceito”, segundo ele, “embora exista a questão de quem deve pagar por isso”.
Como Hong Kong, o Reino Unido também isenta certos viajantes das regras de fronteira, incluindo motoristas de veículos de mercadorias e tripulantes.
Flexibilização da quarentena
As isenções de quarentena de Hong Kong existem há meses, mas a terceira onda não tinha ocorrido até julho.
Peiris acredita que isso se deve a um segundo fator crucial: as medidas de distanciamento social foram significativamente flexibilizadas em junho.
Ele diz que, enquanto as medidas de distanciamento social estiveram em vigor, o sistema conseguia suportar, mas depois que as medidas forem relaxadas as infecções importadas se espalham rapidamente. “É uma lição para todos”, diz ele.
Tsang aponta que, no final de junho, o governo havia permitido reuniões públicas de até 50 pessoas, enquanto havia comemorações pelo Dia dos Pais e aniversário da transferência da soberania sobre Hong Kong do Reino Unido à China.
“Muitos cidadãos estavam cansados depois de meses de distanciamento social, então, quando o governo relaxou as restrições finas, eles começaram a se reunir com amigos e familiares”, disse. “É lamentável, foram muitos fatores combinados ao mesmo tempo.”
No entanto, Peiris enfatiza que os cidadãos de Hong Kong foram “extremamente obedientes” às medidas de distanciamento social e de higiene durante a primeira e a segunda ondas. “Na verdade, eles estavam até mesmo um passo à frente das instruções do governo, usando máscaras antes de serem obrigatórias.”
Depois disso, a reintrodução das medidas de distanciamento social já está surtindo efeito, segundo ele, que espera que Hong Kong volte a quase zero infecções locais dentro de quatro a seis semanas.
Nesse momento, ele acrescenta, o desafio será acabar com as infecções importadas, principalmente quando as medidas de distanciamento social voltarem a ser relaxadas.
É um desafio que outros países também enfrentarão quando tiverem êxito em conter o vírus dentro de suas fronteiras, porque “quando você atinge baixos níveis de transmissão dentro da sua população, a introdução de fora pode levar a desastres”.
Protestos
Muitas das lutas de Hong Kong contra a pandemia são comuns a outras regiões, mas o território também passou por outra crise, a política, no último ano.
Em 1º de julho, milhares de pessoas participaram de uma manifestação pró-democracia, apesar de a marcha ter sido proibida pelas autoridades que disseram que ela violaria as diretrizes de distanciamento social.
Centenas de milhares também votaram nas primárias da oposição ao governo em meados de julho, apesar do aviso do governo de que as primárias poderiam violar uma nova lei de segurança.
Desde então, a mídia estatal chinesa vem culpando os dois eventos por desencadear a terceira onda de infecções, enquanto um político classificou como “comportamento absolutamente irresponsável”.
No entanto, especialistas em saúde dizem que não há evidências de que esses episódios tenham casado o pico das infecções.
Cowling diz que os cientistas “são capazes de vincular casos para identificar cadeias de transmissão, e não há grupos atribuídos a esses eventos”. E o professor Peiris afirma que os eventos “podem ter agravado as coisas um pouco”, mas diz que não acredita ter sido um fator determinante.
Tsang diz que a pesquisa mostrou que “a cepa do coronavírus na terceira onda é diferente da das ondas anteriores”. Ela tem um tipo de mutação particularmente observada em tripulações aéreas e marítimos das Filipinas e do Cazaquistão, por isso acredita ter sido importada.
Houve discussões semelhantes em todo o mundo, particularmente à luz dos protestos contra o racismo provocados pela morte de George Floyd, sobre se as manifestações podem levar a um aumento nas infecções. Alguns especialistas disseram que eventos ao ar livre em que os participantes usem máscaras e tomem precauções podem ter risco menor do que o esperado inicialmente.
Eleições
Existe uma especulação de que o governo de Hong Kong poderia adiar as eleições de setembro para o Parlamento, com o aumento nas infecções como justificativa.
Várias reportagens da mídia local, citando fontes anônimas, dizem que o governo deve postergar as eleições em um ano.
Políticos opositores acusaram o governo de usar a pandemia como desculpa para adiar as eleições, especialmente porque a oposição teve um forte desempenho nas eleições locais no fim do ano passado.
No entanto, a medida foi bem recebida por alguns, incluindo o ex-presidente do Conselho Legislativo Jasper Tsang. “O governo não poderá se absolver da culpa se as assembleias de voto se transformarem em focos de propagação do vírus”, disse ele à imprensa local.
“Também é quase impossível para os candidatos buscar votos, dadas as regras de distanciamento social.”
O professor Cowling diz que as medidas de distanciamento social reintroduzidas pelo governo já impediram o número de casos de acelerar na semana passada.
“Não tenho certeza de que seja necessário adiar as eleições — certamente não por um ano. Você poderia adiá-las por duas semanas ou um mês, porque até lá é quase certo que teríamos números (de infecção local) voltando a zero.”
Ele acrescenta que existem muitas maneiras de tornar as eleições mais seguras, incluindo aumentar o número de mesas de voto e funcionários para reduzir o tempo de espera, garantir que as salas sejam bem ventiladas, além de testar todos os membros da mesa dois dias antes da eleição.
Os governos adotaram abordagens muito diferentes em relação a esse tema: pelo menos 68 países ou territórios postergaram suas eleições devido à covid-19, enquanto 49 realizaram as eleições conforme o planejado, segundo o Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral.
No Brasil, a Câmara aprovou o adiamento das eleições municipais deste ano em razão da pandemia provocada pelo novo coronavírus. O texto prevê o primeiro turno em 15 de novembro, e o segundo, em 29 de novembro, além de prorrogar diversas datas do calendário eleitoral, como das convenções partidárias e registro de candidaturas.
Cingapura realizou suas eleições gerais no início deste mês, e teve sua maior participação nos últimos anos, diz Eugene Tan, professor de direito e comentarista político da Singapore Management University.
“Nunca há um bom momento para uma eleição durante uma pandemia”, diz ele, mas a votação foi realizada com várias medidas de segurança e “demonstra que é possível proteger a saúde pública, mesmo quando as pessoas exercem seu direito democrático a voto.”
No entanto, ele aponta que decidir sobre a possibilidade de prosseguir com as eleições é difícil para os governos, principalmente se a confiança da população nas autoridades for baixa.
“Se você atrasar as eleições, poderá ser acusado de esperar uma época mais favorável (para o governo), mas, se mantiver a data, poderá ser acusado de jogar com a vida das pessoas. O pior seria ter uma eleição, e depois registrar um pico no número de casos.”
Nesta semana, o presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, defendeu o adiamento das eleições, minutos depois de os Estados Unidos anunciarem o pior resultado de seu PIB na história, com uma queda de 32,9% em termos anuais.
Devemos falar em várias ondas da pandemia?
Nesta semana, a Organização Mundial da Saúde (OMS) disse que a pandemia de covid-19 deve ser entendida como uma grande e única onda.
OMS diz que pandemia é “uma grande onda”
“Nós estamos na primeira onda. Será uma grande onda. Não tem sentido falar de segunda ou terceira”, afirmou a porta-voz da OMS, Margaret Harris, após ser questionada sobre a reaceleração da pandemia de covid-19 em locais onde a curva de contágio vinha perdendo força.
A avaliação de Martin Hibberd, professor de doenças infecciosas emergentes da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, é que, de fato, devemos entender a situação até agora como uma grande onda, quando olhamos para a situação mundial.
No entanto, segundo ele, podemos falar em ondas em “escala local” — como em países ou regiões de países.
“A idéia de ‘ondas’ é tipicamente baseada em uma área relativamente pequena e leva em conta o número de casos subindo e descendo nessa localidade”, afirmou à BBC News Brasil.
Sobre o Brasil, Hibberd diz que o país “parece não ter deixado a primeira onda ainda”.
“Pode haver algumas áreas do país que podem conseguir se isolar e, se passarem algum tempo (mais de um mês) sem nenhum (ou pelo menos muito poucos) casos, você poderia dizer que essas áreas saíram da primeira onda, mesmo que o resto do país não tenha saído.”
O professor alertou, ainda, para o fato de que precisaremos lidar com a pandemia por meses ou anos.
“A pandemia não vai desaparecer e ficará conosco por muitos meses e possivelmente anos. Até que tenhamos tratamentos adequados, medidas eficazes de controle em vigor (incluindo rastreamento de contato) e uma vacina, estaremos altamente vulneráveis a surtos repetidos.”
*colaborou Laís Alegretti, da BBC News Brasil.
Casos de coronavírus voltam a bater recorde na Ásia
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