Covid-19 se alastra em frigoríficos e põe brasileiros e imigrantes em risco
Em situação de grande vulnerabilidade social, estrangeiros geralmente dividem o domicílio com vários colegas para reduzir os custos e têm dificuldade para entender as recomendações em português. Equipes da Cruz Vermelha Alemã visita casa onde moram funcionários do frigorífico Töennies em Rheda-Wiedenbrueck, na Alemanha, na segunda-feira (22)
David Inderlied / DPA via AP
“Atenção população haitiana: a prefeitura solicita que todos que apresentarem sintomas gripais liguem para sua unidade de saúde.”
Traduzida para os idiomas francês e crioulo haitiano, a mensagem é espalhada por carros de som em Xaxim, no oeste de Santa Catarina. A ideia é que chegue a parte dos 4 mil estrangeiros, a maioria haitianos, que vivem na cidade de 28 mil habitantes.
Boa parte dos imigrantes que vivem nessa região do país tem um objetivo: juntar dinheiro para enviar à família. O caminho, para muitos deles, é o trabalho nos frigoríficos — que acabaram se tornando o epicentro de surtos de Covid-19 em diversos estados e têm contribuído para que a doença se espalhe no interior do país.
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O ambiente frio e úmido e o barulho das máquinas, que obriga aquele que quer ser ouvido pelos colegas a falar mais alto, favorece a disseminação do novo coronavírus nesses ambientes. Tanto é que, além do Brasil, países como Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, França e Espanha vêm enfrentando problemas semelhantes.
A questão dos estrangeiros é delicada e vem chamando atenção das autoridades, diz a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Chapecó Mariana Casagranda, porque, além de não falarem o idioma, muitos deles vivem em grupos, na tentativa de poupar recursos, sob o mesmo teto — o que também contribui para disseminar o vírus.
Santa Catarina contabiliza 3.132 diagnósticos positivos de Covid-19 entre trabalhadores de 31 frigoríficos, conforme as informações coletadas pela procuradora Priscila Dibi Schvarcz, que coordena o Projeto de Adequação das Condições de Trabalho nos Frigoríficos do MPT.
Até o momento, houve 50 hospitalizações e duas mortes — uma delas, a de um haitiano de 48 anos que vivia em Xaxim.
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G1
Nos três estados do Sul do país, que concentram cerca de metade dos 500 mil trabalhadores de frigoríficos do Brasil, já são 11.500 casos confirmados em 104 fábricas, de acordo com o registro feito pelo MPT.
Os dados coletados pelo Ministério da Saúde por meio do eSUS não informam o local de trabalho dos doentes, o que dificulta dimensionar o problema no país como um todo, diz Schvarcz.
Ainda assim, ela acrescenta, foram verificados surtos, além daqueles no Rio Grande do Sul, no oeste do Paraná e de Santa Catarina, no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás e Rondônia.
O setor que mais emprega imigrantes
O Brasil é hoje um país com poucos imigrantes em termos proporcionais. A presença de estrangeiros no mercado de trabalho é, portanto, pequena.
Dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) mostram, entretanto, que o setor de frigoríficos é o que mais emprega esse grupo.
Os números mais recentes, referentes a 2018, contabilizavam 15,7 mil trabalhadores de outras nacionalidades que não a brasileira no grupo “abate e fabricação de produtos de carne”, o primeiro lugar entre 276 setores.
O valor representa 10,5% do total contabilizado pelo registro — 149,7 mil estrangeiros com carteira assinada. “Restaurantes e outros serviços de alimentação e bebida” vêm na sequência, com 9,7 mil.
Os haitianos são a imensa maioria entre os imigrantes que trabalham no setor: 11,2 mil entre os 15,7 mil.
A rubrica “outros africanos” tem o segundo maior número na Rais, 1.099 (muitos trabalhadores de países muçulmanos da África vêm ao Brasil em busca de trabalho na produção de carne halal, cujo abate segue os preceitos islâmicos), seguida por paraguaios (679) e “outros latino-americanos” (662).
Regina Dal Castel Pinheiro, gerente de saúde do trabalhador da DIVS/SUV/SES, ligada à Superintendência de Vigilância em Saúde de Santa Catarina, conta que sua equipe chegou a visitar quatro domicílios de haitianos em Concórdia para verificar a condição em que viviam os trabalhadores.
O principal problema, diz ela, é o fato de que muitos dividem a mesma casa e que o ambiente muitas vezes não tem condições de higiene adequadas.
“Conversamos com as Secretarias de Assistência Social e pedimos que orientassem essas pessoas e as incluíssem nos programas sociais sociais disponíveis, já que muitas vivem em situação de vulnerabilidade social”, diz ela.
Para a gerente, o fato de os frigoríficos serem ambientes propícios para a disseminação do coronavírus é só uma parte do problema.
Segundo ela, algumas empresas têm sido resistentes em adotar as medidas recomendadas para evitar o contágio nas fábricas: vigilância ativa para detectar novos casos ainda no início e isolá-los, distanciamento maior dos trabalhadores na linha de produção, adequação da entrada e saída dos turnos para evitar aglomerações e distanciamento maior dos trabalhadores nos transportes que os levam e trazem de cidades do entorno.
Em seis rodadas de fiscalização no estado, foram emitidas 14 intimações e 14 autos de infração.
Em unidades com um número elevado de infectados, a vigilância solicitou a testagem em massa dos empregados. Em uma delas, de 4.899 trabalhadores testados, o diagnóstico para covid-19 foi positivo para 1.219. “A grande maioria estava assintomática”, diz Pinheiro.
A procuradora do trabalho Priscila Schvarcz faz avaliação semelhante. Ela destaca que muitas empresas têm se esforçado desde o início da pandemia para implementar corretamente as medidas e mantido um bom diálogo com o MPT.
Outras, contudo, dão preferência ao que os procuradores chamam de “medidas fotografáveis”, mas que são pouco efetivas.
O MPT já entrou na Justiça para pedir a interdição de pelo menos 11 unidades em seis estados.
No fim das contas, ela acrescenta, o próprio setor acaba sendo prejudicado: desde junho, a China suspendeu a importação de seis frigoríficos brasileiros diante da disseminação acelerada da covid-19 nesses ambientes.
Procurada, a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), que representa parte das empresas do setor, afirmou que seus associados adotaram ações preventivas ainda antes da implementação de quarentenas em diversas cidades do país e que seus protocolos setoriais foram validados cientificamente pelo hospital Albert Einstein.
Entre as medidas protetivas, citam a utilização de máscara cirúrgica e de escudo facial pelos colaboradores e a instalação de barreiras laterais nas linhas de produção, impedindo contato entre trabalhadores, além dos habituais uniformes, luvas, máscaras e outros EPIs e camadas de proteção.
Os frigoríficos e a interiorização da Covid-19
Além de expor a vulnerabilidade dos trabalhadores imigrantes, os surtos em frigoríficos também têm contribuído para espalhar a covid-19 no interior do país.
É o que aponta o estudo que está sendo conduzido pelo técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Ernesto Pereira Galindo.
Usando dados do Censo, da Rais e do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), Galindo levantou informações sobre o município de residência e trabalho dos empregados do setor — que muitas vezes são diferentes — e cruzou com informações fornecidas pelo MPT sobre os trabalhadores infectados pelo coronavírus.
Os resultados preliminares apontam que os municípios que abrigam frigoríficos e aqueles em seu entorno, que muitas vezes fornecem mão de obra para as fábricas, são as áreas do interior com maior incidência de contaminação pelo novo coronavírus.
“Não posso dizer que os frigoríficos levaram a doença a essas regiões, mas dá pra dizer que aceleraram a disseminação”, pontua o pesquisador, que é doutorando em geografia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
É o que tem visto, na prática, a procuradora do MPT Priscila Schvarcz no Rio Grande do Sul. O fato de muitos trabalhadores residirem em municípios diferentes daqueles em que trabalham e de se deslocarem diariamente às vezes por duas horas em vans compartilhadas com os colegas tem facilitado a transmissão comunitária em pequenas cidades do interior.
“No Rio Grande do Sul, os 15 primeiros municípios em termos de incidência da doença (casos por 100 mil habitantes) são todos sede de frigoríficos ou cedem trabalhadores para essas fábricas”, ressalta.
Um problema global
Os surtos da doença em frigoríficos não são exclusividade brasileira. Eles têm se tornado um problema em países como Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, França e Espanha. Na maioria deles, a mão de obra dos imigrantes é a principal força de trabalho que move o setor.
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Um relatório publicado no último dia 10 de julho pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC, na sigla em inglês) destaca que, entre os 16,2 mil casos registrados em 239 fábricas, 87% afetaram trabalhadores de minorias raciais ou étnicas.
O texto destaca as características do setor que favorecem a disseminação do Sars-Cov-2: o fato de os trabalhadores ficarem muito próximos uns dos outros nas esteiras por onde passa a carne, de dividirem o transporte de ida e volta e de muitas vezes morarem sob o mesmo teto.
O biólogo Robert Wallace, que há 25 anos estuda a indústria de carne e sua relação com o aparecimento de novas doenças, acrescenta que muitas empresas do setor não têm seguido as recomendações feitas pelas autoridades de saúde para tentar conter a disseminação da covid-19.
“Muitas têm se aproveitado da falta de clareza sobre as atribuições de cada entre — se quem deve fiscalizar é o condado ou o Estado, por exemplo — para se autorregular”, afirma.
Autor de Big Farms Make Big Flu, recém-lançado no Brasil como Pandemia e Agronegócio: Doenças Infecciosas, Capitalismo e Ciência (Editora Elefante), ele propõe uma reflexão mais ampla sobre a forma como o mundo produz e consome carne.
Para Wallace, uma série de características da chamada pecuária industrial favorece o aparecimento e transmissão de novas doenças.
O confinamento, por exemplo, tende a deprimir o sistema imunológico dos animais. A grande homogeneidade genética, por sua vez, retira as barreiras que uma diversidade maior de genomas coloca para a disseminação de um agente infeccioso, enquanto a alta produtividade permite que haja sempre uma grande população “nova” de seres vivos à disposição desses agentes, que podem, assim, evoluir mais facilmente para variantes mais perigosas.
Foi esse ambiente que propiciou o surgimento da gripe suína (H1N1) e da gripe aviária (H5N1), diz o biólogo, que já foi consultor do CDC e da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e hoje faz parte de uma organização independente de cientistas chamada Agroecology and Rural Economics Research Corps.
Apesar de o Sars-Cov-2 ter sido transmitido ao ser humano por uma espécie exótica, e não por um animal criado especificamente para o abate, o pesquisador defende que a pandemia de Covid-19 também está ligada à forma como o setor está estruturado.
À medida que o agronegócio avança sobre florestas e contribui para o desmatamento, diz ele, populações são “empurradas” para regiões mais remotas e estão mais expostas a novos vírus e outros patógenos.
Esse é o tema do novo livro de Wallace, Dead Epidemiologists, que será lançado em setembro.
‘Ele não sabia que tinha Covid’
O haitiano de 48 anos que morreu em Santa Catarina morava em Xaxim e trabalhava em uma fábrica no município de Seara, a cerca de 50 km.
Ele era um dos muitos que diariamente se deslocam para outras cidades para trabalhar, relata o Secretário de Saúde, Isac Casagrande — que acrescenta que o município tem tido uma boa interlocução com o frigorífico instalado na cidade, que tem tomado as medidas preventivas recomendadas pelas autoridades locais.
Xaxim tem a quarta maior incidência de covid-19 no Estado, com 2.494 casos a cada 100 mil habitantes. Até dia 21 de julho, havia 761 diagnósticos confirmados e 19 óbitos.
Quando adoeceu, o haitiano foi levado ao município de Xanxerê, que está a 20 km, para ser atendido no Hospital Regional São Paulo, referência para 14 municípios da região.
“Ele não sabia que tinha Covid”, diz o médico Vinícius Chies de Moraes, que tratou do homem durante o período em que ele esteve na UTI.
Com dificuldade para se comunicar com o paciente, que se mostrava bastante nervoso, Moraes resolveu pedir ajuda a uma recepcionista do hospital que também é haitiana.
Em uma conversa por telefone, ela explicou-lhe a situação, e a resposta do paciente surpreendeu a equipe.
“Ele não estava entendendo nada do que estava acontecendo, achava que nós estávamos querendo prejudicá-lo. A mudança do quadro emocional foi muito significativa a partir do momento em que ele ouviu alguém falando sua língua.”
A pedido dos médicos, a recepcionista entrou em contato com a família do homem no Haiti e passou a lhes enviar boletins diários pelo WhatsApp.
Foi ela também que explicou ao paciente que ele teria de ser submetido a ventilação mecânica, com coma induzido, porque 50% de seu pulmão estava comprometido.
Depois dos pulmões, contudo, a doença atacou os rins e o fígado. Após 27 dias internado, ele faleceu no dia 12 de junho, com síndrome de disfunção de múltiplos órgãos.
Por se tratar de um caso de covid-19, o corpo foi encaminhado diretamente para o cemitério municipal de Xaxim e enterrado naquele mesmo dia.
Com a ajuda da empresa em que o haitiano trabalhava, a diretora geral de Assistência Social da cidade, Josete Percio, conseguiu entrar em contato com um primo dele que também morava em Xaxim. Ela não sabia que o hospital em Xanxerê estava em contato com a família no Haiti.
“Ele confirmou ser parente com a ajuda de um tradutor. O processo todo foi bem difícil.”
Incumbido então de avisar os demais familiares, o primo contou que o homem havia deixado dois filhos no Haiti.
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