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'Mães estão no limite': famílias vivem estresse inédito com crise e quarentena

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'Mães estão no limite': famílias vivem estresse inédito com crise e quarentena


Pesquisas e relatos apontam sobrecarga ainda maior de tarefas, recaindo principalmente sobre as mulheres, com uma rede de apoio e financeira mais frágil do que antes. “O aumento de demanda dentro de casa foi muito grande (com a pandemia), e a gente sempre dividiu os cuidados das crianças com outras mulheres”
Getty Images
Thais Ferreira lida diariamente com mães que, em circunstâncias normais, já viviam situações difíceis. Com a pandemia, “muitas estão no limite mesmo”, diz à BBC News Brasil a ativista e líder comunitária no Rio de Janeiro.
Ela atende mães de todo o Brasil em situação de vulnerabilidade social e econômica, muitas delas solo (ou seja, que não contam com a ajuda do parceiro para cuidar dos filhos) e que viram sua renda financeira e redes de apoio serem totalmente desestruturadas desde a chegada do novo coronavírus.
“Elas estão lidando com questões bem complexas. Todo dia chega para mim alguma mãe com pensamento suicida sério, ou alguém dizendo ‘fala com aquela mãe, que ela não tá bem’.”
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Ferreira e outra colega ativista, Thaiz Leão, ajudam 1.734 mulheres ou famílias vulneráveis no projeto Segura a Curva das Mães, criado durante a pandemia.
O dinheiro arrecadado pelo projeto, por doações e financiamento coletivo, é distribuído às mulheres, em rodadas (até agora duas) de R$ 150, “para comprar uma mistura, uma cesta básica, pagar uma conta”, diz Ferreira.
“A ideia era ser um complemento à ajuda emergencial do governo, mas muitas disseram que não conseguiram acesso à ajuda. A nossa, mesmo pequena, acabou virando a principal ajuda delas.”
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A avaliação de Ferreira é de que 80% das mulheres acompanhadas pelo projeto “precisam de apoio psicológico com urgência”.
“Os problemas vão desde estafa – mulheres que estão com seis crianças em casa sem ter comida para dar a elas ou que passaram a aplicar castigo físico nos filhos, dizendo ‘não sou de bater, mas não consegui me controlar e agora estou me sentindo mal com isso’ – até violência doméstica e baixa autoestima por não conseguirem mais ganhar renda com o que antes vendiam na rua”, diz a ativista.
De uma mãe, ela ouviu: “acho que estou enfeando mais nesta quarentena”.
“A vulnerabilidade é tanto objetiva, com a fome, quanto subjetiva, com essa perda de autoestima”, prossegue Ferreira. “É a vulnerabilidade agravada pela pandemia: já havia uma falha prévia, que atravessa gerações, de assistência a essas mulheres.”
Sobrecarga feminina
Mesmo pais (e sobretudo mães) que não estão em situação extrema de vulnerabilidade viram os níveis de estresse crescerem em casa, ante o malabarismo para conciliar trabalho com cuidados da casa e atividades com as crianças, com jornadas muitas vezes intermináveis.
O motivo principal é que foram desestruturadas as pequenas “aldeias” que ajudavam no cuidado com os filhos, explica a psicóloga Desirée Casado, que abordou o tema durante uma oficina online da instituição The School of Life, em 14 de julho, dedicada a dar dicas (e palavras de conforto) a famílias quarentenadas com crianças.
“O aumento de demanda dentro de casa foi muito grande (com a pandemia), e a gente sempre dividiu os cuidados das crianças com outras mulheres, seja na escola, com as avós ou funcionárias – uma vila que deixou de existir”, diz a psicóloga à BBC News Brasil.
O resultado são “pais mais irritados, culpados e ansiosos”.
As circunstâncias atuais também colocam em evidência o “trabalho invisível” que costuma ser responsabilidade primordialmente de mulheres, ressalta Casado.
Uma pesquisa amplamente conhecida do IBGE feita em 2017 aponta que, em média, as mulheres brasileiras dedicavam o dobro do tempo dos homens a afazeres domésticos e cuidados de pessoas: 20,9 horas por semana gastas por elas, contra 10,8 horas por semana gastos por eles.
Mais recentemente, uma pesquisa global da Ipsos com a ONU Mulheres aponta que a pandemia aumentou o abismo na divisão de tarefas não remuneradas, no Brasil e nos outros 16 países pesquisados.
Aqui, 43% das mulheres entrevistadas em maio (contra 35% dos homens) concordaram fortemente com a frase: “Tive que assumir muito mais responsabilidade pelas tarefas domésticas e cuidados com crianças e família durante esta pandemia”.
Desirée Casado conta que ela própria, durante seus atendimentos em casa, colocou uma placa na porta do quarto com os dizeres para o filho: “Fale com o seu pai”.
Isso porque as mães costumam ser as primeiras a serem chamadas para praticamente qualquer coisa.
“Isso não acontece à toa: a criança aprende que a mãe é quem está mais disponível. Tem toda uma culpa, uma carga social histórica de que a mulher precisa dar conta e estar disponível em tempo integral. (…) As mulheres são as mais vulneráveis, sendo as principais responsáveis pelo trabalho exaustivo e invisível de cuidar da casa e dos filhos”, prossegue a psicóloga.
“No ambiente profissional, a maternidade também é muitas vezes invisível – muita mãe tem que fingir que não é mãe no trabalho e fazer de conta (para seus chefes) que não tem de parar o trabalho para ajudar no ‘homeschooling’ ou para fazer o almoço.”
‘Estou perdendo a fé’
O fardo financeiro também se traduz em fardo psicológico, sobretudo no caso de minorias. Uma pesquisa online com 369 mulheres negras, feita pela ID-BR, organização que promove igualdade racial no mercado de trabalho, apontou que apenas um terço delas está empregada e continua recebendo salários.
As demais 67% vivem diferentes graus de insegurança, sendo que uma parte é empreendedora e recebe por serviços executados, e outra parte está desempregada. Pouco mais de 40% delas são mães, e quase a metade arca com as despesas familiares sozinha.
“Aumentou a minha preocupação e o estresse. Esse dinheiro do governo é muito incerto, eu sou desempregada e estou perdendo a fé. O que me deixa mais triste é a situação do meu filho, eu tenho pavor que falte algo pra ele”, diz uma participante da pesquisa, sob condição de anonimato.
Quase um terço das entrevistadas afirmou que as questões financeiras são o que mais impacta em sua saúde mental atualmente: 36% delas dizem ter tido crises de ansiedade e 20% têm oscilações de humor.
“Me sinto inútil, ociosa, triste… Parece que tudo que já era difícil ficou pior. No âmbito profissional fiquei estagnada. Agora que irei começar a ‘normalidade'”, relata outra entrevistada.
Pais e mães com sintomas de estresse pós-traumático
É difícil prever os efeitos desta sobrecarga atual, afirma Casado, “mas dá para imaginar que, depois da pandemia, teremos uma segunda epidemia, essa de saúde mental”.
“No curto prazo, o resultado é mais insônia, irritação, dificuldade de concentração, compulsões ou consumo de álcool e remédios. No longo prazo, isso pode virar depressão e problemas que exijam uma intervenção (psiquiátrica) mais clara e complexa, com consequências a médio e longo prazo. Lembrando que a depressão e o burnout estão entre as maiores causas de afastamento no trabalho.”
Em fevereiro, a revista científica The Lancet publicou uma revisão de estudos acadêmicos prévios que pesquisaram os impactos do isolamento social em famílias, concluindo que “a maioria dos estudos revisados reportava efeitos psicológicos negativos, como sintomas de estresse pós-traumático, confusão e raiva. Os (fatores) estressores incluíam a longa duração da quarentena, medo da infecção, frustração, tédio, falta de suprimentos adequados, informação inadequada, perdas financeiras e estigma”.
Um dos estudos revisados foi feito em 2013 pela pesquisadora Ginny Sprang, PhD e professora do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Kentucky (EUA).
Ela aplicou questionários a quase 400 pais e mães em áreas da América do Norte que haviam sido bastante afetadas pelas epidemias de Sars (2003) e H1N1 (2009) e instruídas, na época, a fazer quarentena voluntária.
Pelos questionários, Sprang concluiu que o período deixou traumas “a uma porcentagem significativa de crianças e pais”. Em 30% dos casos, as crianças apresentaram sintomas de transtorno de estresse pós-traumático; no caso dos pais, esse índice foi de 25%.
“A covid-19 é diferente da Sars, mas a ameaça de dano é potencialmente a mesma, ou pior”, diz Sprang por e-mail à BBC News Brasil. “Cada pessoa percebe a ameaça de modo diferente, mas alterações em hábitos diários, em liberdades e em (redes de) apoio podem aumentar a percepção de dano (psicológico).”
E, é claro, essa sensação aumenta exponencialmente entre pessoas que perderam entes queridos na pandemia.
Sobre os efeitos de longo prazo disso, Sprang diz que “quanto maior for a duração da exposição (aos fatores negativos da pandemia), mais a recuperação pode ser retardada ou prolongada. Em contrapartida, algumas pessoas aprenderão a se adaptar às circunstâncias, então um crescimento pós-pandemia também é possível”.
“Em geral, os que têm fatores de risco (exposição prévia ao trauma, outros problemas psicológicos, suporte social fraco, são do gênero feminino ou são crianças cujos pais têm transtorno de estresse pós-traumático) estão sob maior risco de problemas de longo prazo”, agrega a pesquisadora.
‘Período mais desafiador da vida’
De um lado, a quarentena proporciona a oportunidade de pais e mães passarem um outro tipo de tempo em família, conhecendo-se melhor, aprendendo novas formas de conviver, de brincar, de se amparar e de ser resiliente em um período difícil.
De outro, diz a ONU Mulheres, “muitas mulheres (e homens) vão lembrar deste período como um dos mais desafiadores de sua vida – um período de Grande Intensidade em vez de uma Grande Pausa”, nas palavras de Ginette Azcona, pesquisadora da entidade.
“O trabalho que recai sobre eles se intensificou, enquanto está faltando o suporte de que precisam para dar conta. Sendo assim, as respostas à covid-19 devem refletir as necessidades específicas e novos fardos que as pessoas, em particular as mulheres, estão enfrentando. (…) Seu trabalho é essencial e precisa ser reconhecido, valorizado e, mais importante, apoiado por diferentes medidas, incluindo políticas como proteção social para provedores de cuidados não remunerados e mais acesso a benefícios a famílias e a licenças remuneradas”.
Para Thais Ferreira, é também o momento de reconhecer a “potência materna”.
Ela conta a história de uma mãe que brigou na Justiça para ficar com a guarda da sobrinha, filha de uma irmã dependente química. A bebê estava em um abrigo, e colegas de Ferreira deram assessoria jurídica para que a guarda passasse à tia.
“Ela estava muito angustiada para ficar com a sobrinha. Quando conseguiu, disse que voltou a sorrir”, conta Ferreira. “É a história de mulheres que assumem a responsabilidade também de outras mulheres e mostra o quanto elas são potentes – de o quanto são vivas e mantêm os outros vivos também. Só faltam mais ferramentas para que possam exercer isso com dignidade.”
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