'Quem abusa de criança não tem transtorno mental, só se sente no direito'
Presidente do Instituto Liberta, que atua no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, a advogada Luciana Temer defende regulamentação para a pornografia e rebate a ideia de que o abuso sexual de crianças e adolescentes é uma violência excepcional e praticada por ‘monstros’. Luciana Temer é presidente do Instituto Liberta, que atua no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes
BBC
O discurso de que o abuso sexual de crianças e adolescentes é uma violência excepcional e praticada por “monstros” é parte das ideias que a advogada Luciana Temer quer combater.
“Minha briga é mostrar para as pessoas que essa violência não é excepcional, é cotidiana. Mais do que cotidiana, ela é praticada por pessoas de bem”, diz. “As pessoas que abusam de crianças não têm, a princípio, grave transtorno mental, elas só se sentem no direito. E se sentem no direito porque somos uma sociedade que permite. A gente permite porque fica em silêncio.”
Luciana Temer é presidente do Instituto Liberta, que atua no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, e professora da Faculdade de Direito da PUC-SP. Foi delegada de polícia, secretária da Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo e secretária de Assistência e Desenvolvimento Social do município de São Paulo.
Em entrevista à BBC News Brasil, ela defende a necessidade de começar a discutir uma regulamentação da pornografia — que ela diz ter “tudo a ver com gatilho de violência sexual contra crianças e adolescentes”.
“Estamos em uma delicadeza que é: como enfrentar a questão da pornografia, da violência, da sexualização precoce, sem cair em um discurso conservador, reacionário, de abstinência sexual? Esse cuidado, neste momento, temos que ter.”
A advogada diz que o erro do Brasil, até aqui, consiste em não enxergar o problema da violência contra crianças e adolescentes, cujo debate normalmente fica concentrado em casos específicos, como o da menina de 10 anos estuprada pelo tio desde os seis. Enquanto isso, a cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019.
A professora também diz ter medo de que o Brasil retroceda no que chama de “poucas conquistas” no âmbito do combate à violência sexual, como o aborto legal (previsto, por exemplo, em casos de estupro). E defende a necessidade de falar sobre sexualidade nas escolas para que as crianças possam se proteger de eventuais situação de abuso.
“A família protege? Então por que mais de 70% dos casos de violência sexual acontecem dentro das residências, a maioria com pessoas próximas — parentes e conhecidos? Esta ideia romântica de que a família é o espaço de proteção absoluta precisa ser rompida.”
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos divulgou em maio balanço do Disque 100 que aponta que a violência sexual contra crianças e adolescentes acontece, em 73% dos casos, na casa da própria vítima ou do suspeito.
A cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019
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Leia, a seguir, os principais pontos da entrevista (e, no fim desta reportagem, veja como denunciar):
Regras para a pornografia
O conteúdo pornográfico disponível na internet incita a violência sexual contra crianças e adolescentes, segundo a advogada. Ela aponta que o termo “novinha” (ou teen porn, em inglês), é o mais procurado.
E descreve a navegação em um site pornográfico: “Vou encontrar os seguintes títulos: ´pai se divertindo com a filha´, ´professor dando nota pra aluna´ e assim sucessivamente. Abertos, gratuitos. Isso é crime? Não, essas meninas são atrizes e estão simulando situações: o pai não é o pai da menina, ela tem mais de 18 anos, mas ela está de maria chiquinha, deitada na cama, e a simulação é que a mãe vai trabalhar e o pai entra no quarto da filha. Isto é um gatilho de violência, incitação a um tipo de violência. E minha discussão é: por que a gente permite?”
“Porque não tem importância. A hora que um cara correto, legal, que tem namorada, abre o site pornográfico e vê esse título, ele não se choca, não se incomoda, não percebe a violência que tá ali. Nossa sociedade não se incomoda quando vê uma menina que nitidamente tem menos de 18 anos com um homem mais velho, na praia. Nem vai chamar a polícia.”
Ela defende uma regulamentação da pornografia para tirar o tema da sombra. “Tem que proibir vídeo chamando ´pai se diverte com a filha´. Não pode.”
“Estamos em processo de conservadorismo tão grande no Congresso Nacional, que eu tenho medo de levantar uma temática dessas e ela ser capturada por um movimento conservador que não tem nada a ver com esta lógica, que é de perseguição a liberdades, inclusive a sites pornográficos, e não é isso. Estamos em uma delicadeza que é: como enfrentar a questão da pornografia, da violência, da sexualização precoce, sem cair em um discurso conservador, reacionário, de abstinência sexual?”
Além da questão da simulação do abuso de crianças e adolescentes e do aumento do consumo desse tipo de pornografia durante a quarentena, Luciana Temer aponta que as crianças têm acesso cada vez mais cedo a conteúdos de sexo que contêm violência.
“Há 25 anos, quando um menino ou menina começava a ter curiosidade sexual, pegava uma revista do pai, que ia ter foto de mulher pelada, e começava a descobrir por si só a sexualidade. Hoje um menino de 11 anos dá um Google e vai ter acesso a todos os sites pornográficos, gratuitamente. (…) Aos 15, 16, ele já está entediado com o que está vendo. E aí você parte para filmes talvez mais violentos, inclusive.”
Falar sobre sexualidade nas escolas
Luciana Temer: ‘ideia romântica de que família é espaço de proteção absoluta precisa ser rompida’
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Diferentemente da violência contra a mulher, que entrou na pauta de discussão nos últimos anos, Luciana Temer diz que o abuso de crianças e adolescentes está fora do debate — e esse é o problema hoje, na avalição dela.
“Até agora, o Brasil não enxergou este problema. Meu medo é que a gente faça mais errado ainda. Meu medo atual é que a gente retroceda nas poucas conquistas que a gente teve”, diz.
Entre possíveis retrocessos, ela cita a discussão, por parlamentares, de retirar da legislação a permissão do aborto legal em casos de estupro. Hoje, o artigo 128 do Código Penal permite o aborto em casos de estupro e se não há outro meio de salvar a vida da gestante. E uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu também o aborto em casos de feto anencéfalo.
Outro risco, na avaliação dela, é não falar sobre sexualidade nas escolas.
“Como posso acreditar que tenho que deixar questão da sexualidade única e exclusivamente para os pais, quando sei que a maioria das violências acontecem dentro da residência, por pessoas conhecidas, inclusive pais, padrastos, tios, avós? Eu não posso tirar da escola essa possibilidade de discutir sexualidade, desde com crianças muito pequenas – para que, se vítimas, possam identificar e falar sobre elas — até meninas adolescentes, que se sentem culpadas pela violência que sofrem.”
“Esta ideia de que a família protege é uma ideia romântica. A família protege? Então por que mais de 70% dos casos de violência sexual acontecem dentro das residências, a maioria com pessoas próximas — parentes e conhecidos? Esta ideia romântica de que a família é o espaço de proteção absoluta precisa ser rompida.”
É também devido à violência dentro de casa que ela se posiciona contra a possibilidade de educação de crianças exclusivamente no domicílio. “Com altíssimos índices de violência intrafamiliar, você não pode tirar da criança o direito de ir pra escola. Um dos problemas gravados no confinamento é justamente que a criança não está tendo acesso ao espaço onde tem um adulto de confiança a quem pode denunciar, que é a escola.”
‘Não é pedofilia’
Luciana Temer aponta que o uso do termo “pedofilia” para caracterizar as violências contra crianças e adolescentes não é adequada, já que se trata de um transtorno mental, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). A pedofilia é classificada pela OMS como uma “preferência persistente ou predominante pela atividade sexual com crianças ou criança pré-púberes”.
“Ser um pedófilo não significa que eu seja um criminoso — posso me tratar e nunca praticar crime. (…) As pessoas que abusam de crianças não têm, a princípio, grave transtorno mental, elas só se sentem no direito. E se sentem no direito porque somos uma sociedade que permite. A gente permite porque fica em silêncio. Se eu tenho pessoa na família que sofre violência sexual eu prefiro abafar essa questão, ‘afinal seu tio é meio maluco mesmo, só não vou deixar você com ele’, porque assim acho que não estou estigmatizando meu filho ou filha.”
“Quando você fala de pedófilo, você fala de monstro, uma coisa excepcional. A minha briga é mostrar para as pessoas que essa violência não é excepcional, é cotidiana. Mais do que cotidiana, ela é praticada por pessoas de bem. Por que uma pessoa como João de deus praticou durante anos violência sexual contra mulheres que não denunciaram? Ou as poucas denúncias foram desacreditadas? Porque ele é um homem do bem. A gente não imagina que o violador sexual pode ser essa figura. A gente está falando de pais que abusam de filhas dentro de casa, ou tios, ou avós, e que são pessoas queridas da família.”
Ela diz que a sociedade precisa mudar a forma como encara o crime sexual. “A vítima não pode ser de nenhuma forma estigmatizada ou olhada de um jeito estranho porque foi vítima de crime sexual. Enquanto a gente faz isso, a gente silencia, deixa impune e permite a perpetuação desse crime.”
Como denunciar violência sexual?
Se a violência estiver acontecendo neste momento ou a criança estiver correndo risco imediato, a recomendação de especialistas é de ligar para a polícia. A Polícia Militar pode ser acionada pelo número 190 em casos gerais de necessidade imediata ou socorro rápido. A ligação é gratuita. Outros números são o 192, do serviço de atendimento médico de emergência, e o 193, do Corpo de Bombeiros.
Pelo Disque 100, que também é uma ligação gratuita e funciona 24 horas, é possível fazer denúncias de violações de direitos humanos. A denúncia é anônima e pode ser feita por qualquer pessoa. Também é possível fazer a denúncia pelo aplicativo Proteja Brasil, disponível para iOs e Android.