Vacina contra o coronavírus: por que a fase 3 dos testes clínicos é essencial para seu sucesso e segurança
Especialistas falam sobre por que é importante evitar a pressa na hora de avaliar e aprovar vacinas contra a Covid-19. Só a fase 3 dos testes clínicos realmente diz se a vacina é capaz de prevenir a ocorrência de infecções
EPA
Às vezes é melhor começar pelo fim.
Portanto, vou começar com a última coisa que o Dr. Ian Jones, professor de Virologia da Universidade de Reading (Inglaterra), me disse quando, no final de uma entrevista, perguntei a ele se havia algo que ele queria acrescentar.
“A única coisa que gostaria de acrescentar é que não sou dado ao sensacionalismo. Quero deixar claro que o que falei é um risco teórico, muito pequeno, mas do qual temos que estar cientes.”
Depois que o governo russo relatou a aprovação da primeira vacina contra Covid-19, o site de informações científicas “Science Media Center” publicou as reações de alguns especialistas.
Uma das abordagens foi do professor Jones e uma de suas reflexões foi: “uma vacina ineficaz é pior do que nenhuma”.
Muitos especialistas em diferentes partes do mundo estão preocupados que a vacina aprovada na Rússia não foi testada em milhares de pessoas para determinar sua eficácia e segurança, processo que ocorre nos ensaios clínicos da chamada fase 3 do desenvolvimento da vacina.
As autoridades de Moscou relataram que ela foi testada em dois grupos de 38 voluntários cada e que até agora “provou ser altamente eficaz e segura”.
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Enquanto muitos especialistas concordam que uma vacina contra a Covid-19 é urgente, uma doença que até esta sexta-feira (21) já havia deixado mais de 793 mil mortes confirmadas, eles também esclarecem que é fundamental que ela seja testada na fase 3 antes de sua distribuição na população.
“Dessa forma, obtemos mais informações sobre a segurança da vacina enquanto obtemos mais dados sobre sua capacidade real de proteção contra a doença”, disse Jones, do Reino Unido.
Perguntamos a ele se há riscos se essa fase não for devidamente avaliada.
Uma visão limitada
“Os riscos são de que a vacina possa ser lançada quando você não tem uma visão completa de como ela funcionará em um grande grupo de pessoas”, disse o especialista.
“Por exemplo, a vacina russa. Eu pessoalmente não acho que haja um problema de segurança porque é muito semelhante ao que foi usado em outros lugares.”
O professor refere-se ao fato de existirem informações e antecedentes suficientes sobre as vacinas à base de adenovírus recombinantes e que permitem “presumir que a própria vacina será segura nas doses normais”.
“Mas até que você experimente em um grande grupo de pessoas, você realmente não sabe se vai gerar uma resposta imunológica boa o suficiente para proteger contra doenças, e se não proteger contra doenças, você corre o risco de dar falsas esperanças a pessoas sobre a circulação contínua do vírus.”
O professor diz que nos ensaios clínicos existem dois tipos de resultados que podem ser esperados.
“O primeiro é que a vacina produza anticorpos em indivíduos que impedem completamente a entrada do vírus nessas pessoas. O vírus tenta infectar, mas simplesmente não consegue por causa da resposta que a vacina gerou. Esse é o resultado ideal”, afirma.
A segunda possibilidade, explica o especialista, é que o vírus consiga infectar a pessoa, mas graças à vacina provoque uma manifestação bem menos grave da doença.
Nesse caso, o vírus continuará a circular na população porque não está sendo impedido de infectar, mas sua capacidade de causar os sintomas e as consequências mais graves da infecção está sendo reduzida.
“E se continuar a circular, você sempre tem a possibilidade, por menor que seja, de que o vírus piore com o tempo”, disse ele.
Circulação
De acordo com Jones, “se a vacina protege contra a doença, devemos estar otimistas de que ela removerá a ameaça representada pela atual pandemia”.
Grupos de alto risco podem ser vacinados e “então, se tudo der certo, a taxa de mortalidade associada à infecção cairia para níveis normais.”
“Não é o resultado ideal, mas é aceitável”, diz.
“No entanto, uma vacina ineficaz que não produza anticorpos suficientes para proteger contra doenças, e certamente não o suficiente para proteger contra infecções, daria às pessoas uma falsa sensação de esperança e continuaria a deixar o vírus circular, sem necessariamente proteger indivíduos em grupos de risco: idosos e pessoas com problemas de saúde latentes”, acrescenta.
E por isso ele considera que uma vacina que não é realmente eficaz seria pior do que não ter vacina.
“No caso de não haver vacina, você pode continuar com todas as medidas que estão sendo implementadas no mundo, como distanciamento social, entre outras. Você vai continuar ciente de que existe uma situação perigosa por aí, mas tendo uma vacina que não funciona dá uma falsa sensação de segurança que, na verdade, não vai ajudar. Só pioraria tudo.”
Jones já havia escrito sobre isso no “Science Media Center”.
“O maior risco, porém, é que a imunidade gerada não seja suficiente para dar proteção, levando à disseminação contínua do vírus mesmo entre os imunizados. E embora seja apenas uma possibilidade, uma proteção inferior à completa poderia exercer pressão de seleção que leva o vírus a escapar do anticorpo existente, criando cepas que então evitam todas as respostas da vacina. Nesse sentido, uma vacina ineficaz é pior do que nenhuma. Portanto, o monitoramento cuidadoso do vírus deve acompanhar qualquer lançamento antecipado.”
O que acontece na fase 3?
A fase 3 é quando os pesquisadores tentam avaliar a eficácia da vacina e confirmar sua segurança.
“Em outras palavras, você está procurando por uma redução real nos casos de doenças no número de pessoas que foram vacinadas em comparação com o mesmo número de indivíduos que não receberam a vacina”, explicou Jones.
As etapas anteriores, fases 1 e 2, também dizem respeito ao desempenho e à segurança do produto, “mas é apenas a fase 3 dos ensaios clínicos que realmente diz se a vacina é capaz de prevenir a infecção”.
Segundo o Dr. Fernando Rodríguez, professor de Medicina Preventiva e Saúde Pública da Universidade Autônoma de Madrid (UAM), nas fases iniciais os sujeitos da pesquisa não estão diretamente expostos a uma possível infecção.
“Uma coisa é mostrar que os anticorpos são produzidos e outra coisa é mostrar que a vacina realmente protege contra a infecção. Isso não se sabe nos estágios iniciais da pesquisa, nem na primeira, nem na segunda. Para saber isso, especificamente, a fase 3 é necessária “, disse o médico à BBC News Mundo, serviço em língua espanhola da BBC.
Quanto mais gente, melhor
Esta fase é caracterizada pela participação de milhares de pessoas: “Quanto maior o número, melhor”, disse Jones.
“Às vezes o problema é que, se a doença não está circulando, pode ser difícil encontrar o número de pessoas que poderiam entrar em contato com o vírus. Mas no caso da Covid-19, não é o caso. Nessa situação, o vírus está circulando muito ativamente em algumas partes do mundo e os testes de fase 3 podem ser organizados nessas localizações geográficas.”
Centenas de cientistas e empresas farmacêuticas em vários países estão trabalhando ininterruptamente e a toda velocidade para desenvolver uma vacina.
Há sete grupos de pesquisa com vacinas em testes de fase 3. Dois deles, a Pharmaceuticals Moderna e a Pfizer, disseram que planejam testar suas vacinas com 30 mil pessoas cada.
A Moderna se concentrará em voluntários nos Estados Unidos, um dos países mais afetados pela doença, enquanto a Pfizer anunciou que também fará seus testes tanto nos Estados Unidos quanto na Alemanha, Argentina e Brasil.
A vacina experimental da Universidade de Oxford já está em fase final e visa testar milhares de pessoas em países como Brasil, África do Sul e Reino Unido.
As autoridades que lideram o desenvolvimento da vacina russa anunciaram na quinta-feira que começarão os testes clínicos com 40 mil pessoas na próxima semana, não apenas na Rússia, mas em outros países também.
Na fase 3, disse Jones, os participantes do estudo são divididos em dois grandes grupos: um grupo de controle e um grupo de teste.
Esse grupo receberá uma ou duas doses da vacina e “um mês, dois, três meses depois”, essas mesmas pessoas serão analisadas clinicamente “para ver se encontraram o vírus ou sofreram com a doença”.
Efeitos adversos
O objetivo é determinar se a população vacinada esteve protegida e não contraiu a Covid-19 e também se ocorreram raros efeitos adversos graves.
E é neste aspecto que as fases 1 e 2, por serem realizadas apenas com pequenos grupos, têm limitações.
“É muito improvável que uma reação (adversa infrequente importante) que ocorre em apenas 1 em 10 mil pessoas seja observada em algumas centenas de pessoas”, diz Rodríguez. Esse é outro risco que pode ser detectado na fase 3.
“Intuímos que uma vacina deve ser eficaz a partir dos anticorpos que demonstramos ser formados na fase 2, mas não temos certeza de que seja eficaz e não temos informações completas sobre a segurança da vacina porque ela foi testada em apenas algumas centenas de sujeitos. É perfeitamente possível, não muito provável, que a vacina não proteja contra a infecção e, além disso, tenha efeitos adversos pouco frequentes, mas importantes”, disse o professor da Espanha.
Rodríguez também explicou um fenômeno paradoxal chamado de amplificação de infecção dependente de anticorpos (ADE, na sigla em inglês).
“É um fenômeno imunológico pouco conhecido, mas sabe-se que em alguns indivíduos, após a vacinação, são geradas reações imunológicas anormais que aumentam o risco de infecção.”
Ele insiste que não se sabe muito por que isso acontece e acrescenta: “Esta é uma das razões pelas quais também é muito importante fazer os ensaios de fase 3. Mas também é verdade que não é um fenômeno muito frequente”.
Monitoramento constante
Paul Offit, diretor do Centro de Educação em Vacinas do Hospital Infantil da Filadélfia e cocriador de uma vacina contra o rotavírus, disse à BBC News Mundo no final de julho que, levando em consideração o cenário de ensaios clínicos sendo realizados em 30 mil pessoas, a vacina seria dada a cerca de 20 mil, com os outros 10 mil recebendo um placebo.
Com as informações das 20 mil pessoas, disse o especialista em imunologia, pode-se garantir que a vacina potencialmente não terá nenhum efeito colateral grave raro. Isso seria um passo fundamental para decidir se ela será aprovada.
“Mas 20 mil pessoas não são 20 milhões de pessoas. Acho que quando você vacina dezenas de milhões ou centenas de milhões de pessoas, pode descobrir efeitos adversos graves dos quais não tinha conhecimento.”
É por isso que é crucial que haja sistemas e mecanismos em funcionamento para que quaisquer problemas possam ser detectados rapidamente.
“Você não quer sacrificar a segurança pela velocidade, e não o faremos se testarmos (a vacina) em pelo menos 20 mil pessoas antes de aprová-la”, disse ele.
Dessa forma, o risco pode ser mitigado até certo ponto.
Porcentagens
Segundo Rodríguez, em geral, as primeiras vacinas feitas para atacar uma doença não são 100% eficazes.
“Sabemos que a vacinação contra influenza que é administrada anualmente a idosos ou pessoas com doenças crônicas tem eficácia de 50% a 60%, ou seja, reduz o risco de infecção pela metade ou 40%”, ele apontou.
O mesmo acontece com outras vacinas, segundo o pesquisador.
“Se além de reduzir a infecção, a vacina conseguir reduzir a gravidade da infecção, melhor”, acrescentou.
Nessas circunstâncias, com mais de 22 milhões de infectados no mundo, isso já seria uma conquista.
A Food and Drug Administration (FDA) dos EUA disse em junho que esperava que uma vacina contra Covid -19 “prevenisse a doença ou diminuísse sua gravidade em pelo menos 50% das pessoas vacinadas” e destacou a importância do tamanho dos ensaios clínicos ser grande o suficiente.
Natalie Dean, uma bioestatística e especialista em doenças infecciosas da Universidade da Flórida, observou no “The New York Times” que a OMS diz que uma vacina deve ser pelo menos 50% eficaz, em média, através de diferentes faixas etárias.
“Esta referência é crucial porque uma vacina fraca pode ser pior do que nenhuma vacina. Não queremos que as pessoas que estão ligeiramente protegidas se comportem como se fossem invulneráveis, o que poderia agravar a transmissão.”
Sua reflexão foi escrita no dia 3 de agosto, em artigo em que alertava sobre a importância de não se apressar o processo de aprovação das vacinas.
Seu texto se chamava: “Eu precisaria de evidências antes de receber uma vacina Covid-19. Elas ainda não existem”.
A primeira linha é: “Os cientistas devem nos mostrar os dados. E é exatamente nisso que eles estão trabalhando.”
E a fase 3 será crucial nisso.
Vacina russa: 40 mil pessoas serão testadas na fase 3
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